Contaram-me em pequeno a história de um senhor que tinha mandado fazer cartões de visita em que, por baixo do nome, se lia: “Antigo Passageiro do Paquete Império”. Ter sido passageiro no barco era-lhe motivo de orgulho visível. O cartão estabelecia uma relação por afinidade entre o seu possuidor e um grande paquete; e o nome do paquete estabelecia uma segunda relação de afinidade com um império. O cartão intimava assim que o seu possuidor tinha sido uma espécie de imperador; e, melhor ainda, ou mais dignificado, que era um antigo imperador. Em Portugal nunca houve tecnicamente imperadores; as afinidades visam remediar essa deficiência. Onde em Portugal não há uma coisa pode sempre por afinidade arranjar-se alguma.

Tome-se o caso da pintura. Considera-se por vezes que o pintor inexplicavelmente conhecido por Diego Velázquez devia antes ter no seu cartão de visita “Filho de João Rodrigues da Silva, natural do Porto.” Velázquez com efeito é um português por afinidade, e Portugal tem-por-afinidade um grande, porventura o maior, pintor do século XVII. Onde falta a pintura há-por-afinidade pintores e quadros. O quadro mais conhecido de Velázquez, “Las Meninas”, é praticamente português. Se Velázquez fosse espanhol decerto ter-lhe-ia chamado, mais idiomaticamente, “Las Chicas”.

Ocorre também o exemplo da filosofia portuguesa, inexistente. O filósofo holandês Baruch, desejavelmente Bento, Spinoza, que integra a primeira divisão filosófica, e que para alguns é o maior filósofo do século XVII, deveria em boa justiça ter mandado imprimir cartões de visita com a indicação “Filho de Miguel Spinoza, natural da Vidigueira.” Comentadores portugueses observaram com argúcia a respeito de Spinoza que só a alguém nascido-por-afinidade na Vidigueira poderia ocorrer a ideia, tão caracteristicamente alentejana, de que Deus e a natureza são a mesma coisa.

Mas o caso mais lisonjeiro é o do teatro. É opinião geral que o maior dramaturgo de todos os tempos foi William Shakespeare. A investigação não mostrou cabalmente que fosse um descendente da família Pires ou Peres; e por isso o processo usado a respeito de Velázquez e Spinoza não pode ainda em boa consciência ser aplicado. Acontece porém felizmente que Shakespeare dedicou uma tetralogia a portugueses por afinidade. Trata-se das quatro peças protagonizadas respectivamente por Ricardo II, Henrique IV (partes 1 e 2) e Henrique V. De facto, estes três heróis eram respectivamente primo direito por afinidade de D. João I, tio de D. Duarte, e primo direito de D. Duarte. É um grande, e porventura o maior, título de honra para o teatro português que a três portugueses-por-afinidade tenha sido dada a atenção do Bardo; embora poucos portugueses se ufanem disso. Não haver teatro português é um preço razoável que vale a pena pagar. De facto, como se observa numa dessas peças, “a discrição é a parte mais importante do mérito.”

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