O autocarro ia a caminho. Já contava alguns quilómetros nas rodas quando alguém achou estranha uma debandada – estavam milhares de adeptos, vestidos de verde e branco, a caminharem no sentido oposto. Justificava-se: o Jamor era para o outro lado. O condutor deu a volta, acertou a bússola e lá deixou a equipa do Celtic no Estádio Nacional. À espera estava o Inter de Milão, o tal que em quatro épocas ganhara duas Taças dos Clubes Campeões Europeus (em 1964 e 65). Na primeira vez que a UEFA meteu uma final europeia em Portugal, contudo, a história foi outra.

O Jamor era palco de novidades. Em 11 anos de Taça dos Clubes Campeões Europeus (tudo começou em 1956), o Celtic tornava-se na primeira equipa britânica a conseguir estar no dueto final. Era coisa séria: chegou a Lisboa só com vitórias e 16 golos marcados pelo meio. O Inter seguiu a mesma rota, embora disparando a arma menos vezes (11 golos a favor).

A hora e meia de bola a rolar no Estádio Nacional fez do Celtic um campeão europeu. O 2-1 final, com 46 mil pessoas a assistir, deu aos escoceses a alcunha “Leões de Lisboa”. O apelido ficou, mas haveria outro talvez mais adequado – “Leões de Celtic Park”. A explicação está no local de nascimento de cada um dos 11 escoceses que, a 25 de maio, conquistaram a prova: apenas um nasceu a mais de 17 quilómetros do estádio do clube, em Glasgow. O tal Celtic Park.

De resto, os tempos eram outros. E as diferenças, muitas. Primeiro, nas regras: substituir jogadores ainda era proibido e apenas uma lesão do guarda-redes abria uma exceção.

As restantes vieram com o último apito do árbitro. O jogo acaba, a festa rebenta e os adeptos invadem o relvado. Eram perto de 12 mil e nada se fez para os impedir. Todos tinham a mesma missão – arranjar uma lembrança. Traduzindo, rodearam e despiram os jogadores do que conseguiam, fosse a camisola, os calções ou as chuteiras. Tudo servia. “Agarravam em qualquer souvenir que pudessem arranjar”, garantiu Billy McNeil, o então capitão do Celtic, ao recordar a ocasião ao “The Independent”, em 1997.

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O boné que guardava tudo

Por sorte, não levaram um boné que ficara junto à baliza defendida por Ronnie Simpson. “Vários jogadores usavam dentes falsos e era costume ser ele a guardá-los dentro de um boné, durante a partida”, lembrou McNeil, no 30.º aniversário da conquista. Com tanta festa, porém, nenhum dos tais escoceses desdentados se lembrou dele.

Só alguém o fez no balneário e já com a taça a servir de companhia. “O engraçado é que o boné ainda lá estava, depois de 12 mil adeptos inundarem o relvado”, prosseguiu Billy McNeil, brincando que, “de outro modo, um qualquer escocês de meia idade se gabaria hoje de ter os dentes de um leão”.

Dez anos volvidos, a história já era diferente. Pelo menos a versão era outra na cabeça de Jim Craig, outro dos 11 escoceses que alinharam pelo Celtic naquela tarde, no Jamor. “Vários jogadores correram em direção a Ronnie Simpson no final do jogo e roubaram-lhe o boné. Porquê? Tinham lá guardados os seus dentes falsos”, contou, desta feita nos 40.º parabéns a você da conquista (2007). A única certeza é que o boné guardou algo precioso.

Ganhar uma final equivale a levantar uma taça. Já em 1967 assim o era. A diferença, aqui, aconteceu com Billy McNeil, o capitão do Celtic que não teve companhia quando ergueu a Taça dos Clubes Campeões Europeus no púlpito do Estádio Nacional – os restantes jogadores do Celtic estavam já no balneário a comemorarem a vitória. E foi a essa porta que vários adeptos escoceses foram bater, após a partida. A equipa deixou-os entrar e chegaram até a beber champanhe diretamente do troféu.

Talvez por isso tenham saído do Jamor sem medalhas de vencedor. Os galhardetes apenas foram entregues em Lisboa, durante o jantar realizado após a final. Jim Craig, um dos jogadores, contou que, a meio do banquete, um delegado da UEFA apareceu e colocou “o que parecia ser uma caixa de sapatos” à frente do treinador Jock Stein. Lá dentro estavam as medalhas.

A queda do império latino

As novidades da final do Jamor continuam. Em 1967, a Taça dos Clubes Campeões Europeus ainda tinha algo de recente colado ao nome. A UEFA só criou a prova em 1955 e, em 11 edições, os vencedores vieram sempre das costelas latinas da Europa: Itália, Portugal e Espanha.

As finais que o digam. Até 1967, os encontros que decidiam quem levantava o troféu só tiveram três equipas de outro países: os alemães do Eintracht Frankfurt (1960), os franceses do Stade Reims (1956 e 59) e os jugoslavos do Partizan (1966). O Benfica contribuiu para esta tendência e marcou presença em três finais (1961, 62 e 65).

O sotaque latino na Taça dos Clubes Campeões Europeus acabou no Jamor – e foi Portugal a acolher a segunda etapa em três anos de crescimento para o futebol britânico. Aliás, houve sempre algo de português nesta ascensão. Um ano antes, em 1966, a Inglaterra chegou ao final do Campeonato do Mundo às custas da seleção dos Magriços (derrotados nas meias-finais da prova, em Wembley). Após a conquista do Celtic, foi ao Benfica que o Manchester United roubou a Taça dos Campeões Europeus, na final de 1968.

Agora Lisboa verá de perto outro império (mais pequeno) a desfazer-se: é a primeira final da Liga dos Campeões desde 2010 que não tem uma equipa alemã à mistura. Desta vez, será no Estádio da Luz. Olé.