No total de reclusos em prisão preventiva, o número de libertados parece uma pequena franja. Mas, esmiuçadas as estatísticas da Direção Geral dos Serviços Prisionais, nos últimos cinco anos, 5% de um universo de 11.015 presos preventivos (cerca de 20% da população prisional) foram libertados porque o processo-crime de que eram alvo se extinguiu. Ou porque, já em julgamento, acabaram absolvidos dos crimes de que vinham acusados e que os puseram atrás das grades.
São 338 os homens e mulheres a quem, nos últimos cinco anos, foi aplicada a medida de coação mais grave, a de prisão preventiva, e que acabaram libertados por extinção do procedimento criminal. Significa uma média de 68 a cada ano.
Os Serviços Prisionais começaram há cinco anos a contabilizar os reclusos saídos, em situação de prisão preventiva, devido à extinção do procedimento criminal – seja porque alguns dos crimes de que eram suspeitos prescreveram, ou porque deixaram de ser crime, ou mesmo porque a investigação não cumpriu os prazos devidos e o processo criminal acabou por cair. Neste período, estiveram nas cadeias portuguesas um total de 11.915 reclusos em prisão preventiva.
A mudança nos critérios estatísticos deu-se pouco depois de o então procurador-geral da República, Pinto Monteiro, dirigir um documento para todos os magistrados onde dava indicações expressas de que investigações a crimes de corrupção e a crimes violentos eram prioritárias. Mais: deu prioridade a processos com arguidos detidos ou em risco de prescrição.
“Será dada prioridade absoluta aos processos com arguidos detidos e aos processos relativos a crimes cujo prazo de prescrição se mostre próximo do seu fim”, dizia a diretiva.
O advogado Miguel dos Santos Pereira, também membro da European Criminal Bar Association, explica que os prazos de prescrição do procedimento criminal variam entre os dois e os 15 anos, tendo em conta possíveis tempos de suspensão, e quando tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. “Ou seja, para os crimes mais graves facilmente estaremos a falar de processos com prazos de prescrição superiores a 20 anos”, conclui.
“Independentemente dos prazos de inquérito, eventual instrução e julgamento, um Estado que não consiga aplicar a justiça a um cidadão num período de 20 anos (para os crimes mais graves) tem um problema gravíssimo no seu sistema judicial. Ainda que estejamos a falar de outro tipo de crimes, com prazos de prescrição do procedimento criminal bastante inferiores, a extinção de uma média de 67,6 procedimentos criminais por ano por força da sua prescrição poderá não ter grande significado em termos percentuais, mas passa a mensagem, sobretudo para os envolvidos, que a justiça não funcionou (e como tal não funciona)”, diz Miguel dos Santos Pereira.
Casos mais raros, mas que “não deixam de ser graves”, na ótica do procurador do Ministério Público, Carlos Figueira, ao serviço do Tribunal de Execução de Penas. O procurador lembra que a aplicação da medida de coação mais grave também se prende com a medida da pena dos crimes em causa, que tem que ser superior a cinco anos (ou a três quando estão em causa crimes contra as pessoas). E quando se aplica esta medida de coação, têm que existir fortes indícios.
“Existem processos muito complexos em que é difícil não passar os prazos. E que prescrevem. Quanto à absolvição, há muitas testemunhas que na fase de inquérito dizem uma coisa e que perante o juiz de audiência mudam de discurso”, diz Carlos Figueira.
As estatísticas mostram que nestes últimos anos, entre 2009 e final de 2013, 262 homens e mulheres foram libertados porque, já em tribunal, se provou que não cometeram os crimes de que vinham acusados e acabaram por ser absolvidos.
O procurador-geral Pinto Monteiro chegou a declarar-se publicamente contra os megaprocessos, porque por se prolongarem no tempo corriam o risco de colocar em causa a Justiça. Um “fascínio ” que a justiça portuguesa tem, acusa Miguel dos Santos Pereira. Mas que pode ter consequências na hora de decidir.
“Megaprocessos com elevado número de arguidos, os tais que são mediáticos e como tal mais apetecíveis para os intervenientes com capacidade de decisão processual, mas que a experiência tem demonstrado que são bastante mais difíceis de julgar e que dão origem a mais prescrições”, defende o advogado.
A investigação de um processo com vários arguidos e crimes em causa é mais complexa e há um risco maior de deixar passar os prazos para deduzir acusação, para a instrução e para o julgamento. “Obviamente que este facto não é nada benéfico para a justiça portuguesa, cria insatisfação para com a justiça”, diz o advogado.
Por outro lado, separar processos pode trazer outras consequências. “Não investigar os processos num todo pode não ser bom para a investigação. Por exemplo, é difícil provar o crime de associação criminosa se separarmos os processos”, disse ao Observador Carlos Figueira.
O magistrado lembra ainda que o arguido tem direitos que devem ser acautelados. E que a separação de um megaprocesso em vários pode não ser tão benéfica.
“Existe o princípio da pena única que confere ao arguido o direito de ser condenado numa só pena a crimes ocorridos no mesmo espaço temporal. Com a separação dos processos, o caso arrasta-se no tempo e o arguido pode ter que enfrentar vários julgamentos”, diz Carlos Figueira.
Em cinco anos, houve ainda 1.973 (16,55%) dos presos preventivos que viram a sua medida de coação ser alterada para prisão domiciliária e por isso foram retirados da prisão.
No final de 2013 havia nas prisões portuguesas 11.095 reclusos condenados e 2.336 em prisão preventiva.
Como é lá fora
Em Portugal, as polícias, coordenadas pelo Ministério Público, têm seis meses para concluir a investigação caso existam arguidos presos ou em prisão domiciliária e oito meses se não houver. Os seis meses podem duplicar em casos de arguidos presos suspeitos de crimes violentos como o terrorismo ou se o procedimento criminal for declarado de especial complexidade. Deduzida a investigação, poderá haver abertura de instrução (para confirmar a acusação) o que em caso de existirem arguidos presos não deve passar os quatro meses.
Em Espanha, o prazo regra para terminar a fase da investigação penal é de seis meses, podendo ser prorrogado por mais seis meses através de pedido fundamentado do Ministério Público ao juiz de instrução. A novidade neste ordenamento jurídico é o prazo para realizar julgamentos: dois anos para terminar o julgamento, a contar da data de acusação. Este prazo pode ser prorrogado por um ano, caso haja um pedido fundamentado.
Em Itália, a fase de investigação é bipartida. O prazo base da investigação é de seis meses, prorrogáveis por igual período através de pedido fundamentado ao juiz de instrução. É ainda possível nova prorrogação em caso de excecional complexidade e de objetiva impossibilidade de terminar o inquérito até ao máximo de 24 meses para crimes especialmente graves.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considera que há três fundamentos legitimadores da prisão preventiva e da sua duração: a persistência de fortes indícios de o arguido ter cometido um um delito grave, a verificação de outros motivos ponderosos para a continuação da privação da liberdade, a necessidade de que as autoridades respeitem as particulares diligências inerentes a casos de arguidos presos.
Em Portugal, no limite, um cidadão poderá estar três anos e quatro meses preso preventivamente – mais seis meses se houver recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo estiver suspenso para análise de questão prejudicial noutro Tribunal.
Casos conhecidos
A 26 de outubro de 2006 o Tribunal da Relação mandou libertar o ex-assessor da câmara municipal de Odivelas, condenado por crimes de abuso sexual e atos homossexuais com adolescente, por excesso de prisão preventiva. Tinham passado 30 meses sobre a sua prisão sem que houvesse trânsito em julgado.
Em novembro de 2013 foi libertado um homem acusado de ter atingido a tiro quatro militares da GNR em Idanha-a-Nova. O homem foi acusado de quatro tentativas de homicídio e libertado na fase de instrução por excesso de prisão preventiva.
Em janeiro de 2013 o homem que chegou a assumir ser o estripador de Lisboa foi absolvido por um tribunal de júri em Aveiro. Era acusado do homicídio de uma prostituta e de fogo posto e chegou a estar preso preventivamente 13 meses.