Um dos mais persistentes e irritantes tiques que se manifestam no cinema consiste em representar o génio ora associado à demência, ora a comportamentos associais. Esse tique volta a aparecer em “O Jogo da Imitação”, de Morten Tyldum (estreia-se hoje), na pessoa de Alan Turing. Brilhantíssimo matemático, criptógrafo e pioneiro da inteligência artificial e dos computadores, Turing, tal como o interpreta neste filme Benedict Cumberbach, actualmente o actor mais falado e mais “in” do planeta, é um tipo sem capacidades de interacção social, seco de sentido de humor e egocêntrico até à exasperação de todos os que o rodeiam.

Ora o verdadeiro Turing, embora divertidamente excêntrico (um aspecto que “O Jogo da Imitação” omite, tal como a sua gaguez), não era de forma alguma como o filme o retrata, sendo conhecido entre aqueles que com ele trabalharam, nomeadamente em Bletchley Park, durante a II Guerra Mundial, e lhe chamavam “O Profe”, como afável, bem-humorado e apreciador de uma boa piada, embora insistisse em prender a sua caneca de chá com uma corrente a um radiador, para que os outros não a usassem por distracção ou por engano.

http://youtu.be/S5CjKEFb-sM
“Trailer” de “O Jogo da Imitação”

Estas liberdades abusivas na caracterização de Alan Turing pelos autores de “O Jogo da Imitação” (baseado na biografia de Andrew Hodges “Alan Turing: the Enigma”, que em 1996 já tinha dado origem ao telefilme da BBC “Breaking the Code”, com Derek Jacobi num Turing infinitamente mais “normal” e fiel ao verdadeiro do que o de Cumberbatch), prolongam-se na quantidade de alterações feitas também aos factos da estadia e da actividade de Turing nas referidas instalações de Bletchley Park, onde, juntamente com uma equipa de matemáticos, criptógrafos e cruzadistas, entre outros, conseguiu decifrar os códigos da máquina alemã Enigma com que a Marinha nazi transmitia as suas mensagens, através da construção de um aparelho electromecânico que baptizou de “Bombe” (e não “Christopher”, um dos muitos desvios da realidade feitos por “O Jogo da Imitação”). 

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A forma como o realizador norueguês Morten Tyldum e o argumentista alteram, simplificam e manipulam os dados da biografia, da personalidade e do trabalho de Turing, a cronologia dos acontecimentos e o quotidiano de Bletchley Park – incluindo a invenção de um espião soviético infiltrado na equipa do matemático, que sabia da sua homossexualidade, coisa que nunca aconteceu – para tornar o filme mais apetecível, mais dramático e mais empolgante ao espectador, e a figura do matemático mais “interessante”, acabam por sacrificar e comprometer a verdade humana e histórica. Ao ponto da realidade ser deturpada de forma inadmissível e da figura de Turing, parcialmente adulterada, se perder num emaranhado de verdades, meias-verdades e fantasias. A legenda que aparece no início, “Este filme é baseado em facto reais”, deveria ter sido alterada para “Este filme é uma ficção baseada em factos reais”. Estaria bem mais de acordo com aquilo que nos é dado a ver.

O génio de Alan Turing

Intocado ficou o lado trágico da história de Turing, que se terá suicidado em 1954, após ter sido acusado e julgado por práticas homossexuais e optado, como alternativa à prisão por um humilhante e cruel processo de “castração química” que lhe causou deformações físicas. Mesmo assim, os acontecimentos que conduziram à sua prisão estão mais detalhada e correctamente descritos no citado telefilme “Breaking the Code”, do que aqui. 

Entrevista com Benedict Cumberbatch

Sobre tudo isto, “O Jogo da Imitação” nem sequer é cinema potável. Além da realização de Tyldum apresentar todo o anonimato indiferente e pronto-a-descartar de um telefilme, o argumento usa e abusa de “clichés”, diálogos de carregar pela boca, personagens de cartão e situações pré-fabricadas, como é o caso do “Momento Eureka!” em que Turing percebe como decifrar as mensagens da Enigma, ou do comandante pronto-a-detestar interpretado por Charles Dance (parece que tem sempre que haver um militar odioso). Por outro lado, a interpretação de Benedict Cumberbatch (o papel esteve para ir para Leonardo DiCaprio…), indubitavelmente um actor de muitos méritos, não me parece merecedora das rajadas de elogios que tem recebido. A culpa não é dele, mas sim de um argumento incapaz de lhe dar munição para que nos convença de que estamos perante um génio da matemática, e que acaba por o mostrar, parafraseando o meu colega Tim Robey, do “The Daily Telegraph”, outro céptico deste filme, como uma super-calculadora falante, presunçosa e com pernas, uma espécie de versão britânica do Sheldon Cooper de “A Teoria do Big Bang” sem a riqueza cómica involuntária nem as referências de cultura pop deste. 

Entrevista com Keira Knightley

Da confusão desonesta que é “O Jogo da Imitação”, escapam apenas a máquina construída por Turing, que fornece os poucos momentos de real tensão, “suspense” e veracidade tecno-científica da fita, e a sempre encantadora Keira Knightley no papel de Joan Clarke, o falso interesse romântico e noiva para manter as aparências de heterossexualidade do Turing de Benedict Cumberbatch. Parece que a verdadeira Joan era um pãozinho sem sal, mas esta é uma imprecisão histórica que, excepcionalmente, vou deixar passar em branco.