Estreia-se hoje o magnífico “Sniper Americano”, de Clint Eastwood, sobre Chris Kyle, o atirador especial com mais mortes confirmadas da história militar dos EUA, interpretado por Bradley Cooper. O filme está nomeado para seis Óscares, mas incrivelmente, Eastwood não foi indicado para Melhor Realizador
Os olhos são os espelho da alma, diz o povo. “Basta filmar sempre os olhos, filmem-lhes os olhos”, dizia mestre John Ford, que assim desvendava o mais íntimo das personagens dos seus filmes. E eu seja cego se não há filme recente que tenha seguido melhor este conselho de Ford do que “Sniper Americano”, de Clint Eastwood. E isso não acontece por acaso, porque Eastwood, aos 84 anos, é o mais fordiano de todos os realizadores americanos, o seu único e mais legítimo herdeiro, na forma como na moral.
Ao filmar o olhar azul-claro de Bradley Cooper, que interpreta Chris Kyle, o “sniper” do título, como Ford filmava os olhares de Henry Fonda, John Wayne ou William Holden, Eastwood revela-nos tudo o que vai por dentro da personagem, sem precisar de lançar mão das palavras: do seu patriotismo sincero, quando Kyle se alista nos SEAL logo após o 11 de Setembro para servir o seu país; até ao filme de guerra que lhe passa em sessões contínuas dentro da cabeça, interpretado por aqueles que teve que matar e aqueles que não conseguiu salvar, e que lhe assombra os dias e as noites, após ter feito quatro comissões no Iraque, registado 160 mortes confirmadas, sido ferido duas vezes, recebido inúmeras condecorações, caído em várias emboscadas, ter tido a cabeça a prémio pelo inimigo e visto morrer vários dos seus camaradas.
“Trailer” de “Sniper Americano”
Em “Sniper Americano”, o filme está também, está sobretudo, nos olhos de Chris Kyle, e Eastwood mete-nos no seu ponto de vista quando ele está no terreno no Iraque, fazendo-nos ver tal e qual o que ele vê pela mira telescópica – quais “voyeurs” do seu ofício de matar com a máxima precisão -, os seus alvos humanos, partilhando a sua concentração, tensão ou ansiedade. Todo o filme está submetido à ideia da visão, tudo é mediado e chega até nós pelo olhar das personagens, até à tão fugaz como devastadora sequência final do cruzamento de olhares entre Taya (Sienna Miller) a mulher de Kyle, e o jovem e perturbado veterano que pouco depois o assassinaria numa carreira de tiro, a dois de Fevereiro de 2013.
Entrevista com Chris Kyle
Escrita por Jason Hall, a fita adapta a autobiografia de Chris Kyle com o mesmo título. Nas mãos de qualquer outro realizador, “Snipe Americano” ter-se-ia transformado ou numa lamechice patrioteira onde Kyle seria celebrado como o “poster boy” do intervencionismo “neocon”, ou num desatado manifesto anti-militarista onde ele viraria um psicopata gerado pela cultura das armas dos EUA. Clint Eastwood não está interessado em nada disso. “Sniper Americano” é um filme sobre um soldado com um dom especial que vai para a guerra, sobre as mossas que a guerra lhe deixa, sobre como uma vez em casa e no seio da família, elas ameaçam esmagá-lo (uma grande interpretação lacónica e ensimesmada de Cooper, sugerindo o máximo e fazendo o mínimo, no melhor estilo do homem que o dirige atrás das câmaras) e como ele as atenua e exorcisa, começando a ajudar outros veteranos.
Entrevista com Clint Eastwood
Aqui, a violência é tão ambivalente como noutro memorável filme do realizador, “Imperdoável”, onde o homem que mata reflecte sobre o acto de matar e é afectado por ele. Mas em ambos os filmes as duas personagens não matam gratuitamente, por vício ou por perversidade. O velho pistoleiro voltado ao activo interpretado por Clint Eastwood em “Inperdoável” tem que honrar um contrato e vingar um amigo brutalmente assassinado, mesmo que tenha jurado à mulher morta que nunca mais pegaria numa arma, e o Chris Kyle de “Sniper Americano” tem que proteger os seus camaradas no terreno, independentemente da guerra em que se envolveu ser justa ou não.
Entrevista com Bradley Cooper
Não contente com isto, “Sniper Americano” é também um manual sobre como filmar com economia, rigor, limpidez e parcimónia formal e emocional. Este é um filme sem espinhas, sem palha, sem verbo gordo, sem desperdício visual, sem ganga sentimental. Clint Eastwood põe o máximo de impressão no mínimo de expressão, diz, mostra e sugere tudo o que é preciso recorrendo apenas ao estritamente necessário. Não há um momento em que a fita perca concentração, clareza, ritmo ou poder de sugestão, nas cenas de acção (ver a espantosa fuga do edifício cercado no meio de uma violente tempestade de areia) como nas de tensão. Clint Eastwood maneja a elipse como Chris Kyle manejava a sua espingarda. E é o equivalente cinematográfico daquelas pessoas muito poupadinhas e discretas que tiram o máximo de dividendos de um punhado de investimentos certeiros.
Resta dizer que “Sniper Americano” está nomeado para seis Óscares, incluindo os de Melhor Filme e Actor (Bradley Cooper, que também é um dos produtores). No entanto, Clint Eastwood não foi indicado para Melhor Realizador. Os membros da Academia de Hollywood andam mesmo ceguinhos.