“O Congresso não passará” e “morte aos fascistas” foram as palavras de ordem na noite de 25 para 26 de janeiro de 1975, junto ao Palácio de Cristal, no Porto. Lá dentro, onde já decorrera a sessão inaugural do I Congresso do CDS, estavam agora reféns mais de 700 militantes e convidados, enquanto cá fora estava montada uma batalha campal entre centenas de manifestantes e a polícia. Das 12 horas de impasse resultaram 16 feridos (sem mortes), alguns carros incendiados, a atenção dos meios de comunicação internacionais que temeram que Portugal estivesse a resvalar novamente para um regime autoritário e um susto para a vida. Aconteceu há 40 anos.
“Foi o maior pesadelo da minha vida”, é assim que Diogo Freitas do Amaral, fundador do CDS, recorda nas suas memórias políticas o cerco ao Palácio de Cristal. O então presidente do partido – e que deveria ser eleito naquela ocasião – nunca chegaria a acabar o discurso previsto para aquela tarde, sendo interrompido pelo barulho de cocktails molotov e tiros de pistola que surpreenderam os centristas que estavam dentro do pavilhão. À porta, primeiro dos jardins e depois do próprio centro de congressos, a convergência de duas manifestações que visavam impedir esta reunião, chocavam de frente com pouco mais de 100 polícias que guardavam as imediações.
A polícia aguentaria os manifestantes durante algumas horas – com algumas baixas pelo meio, já que na multidão havia membros munidos com matracas e começaram a chover pedras da calçada -, a GNR chegaria já noite cerrada a cavalo e ameaçando disparar sobre a multidão. Já o COPCON – isto é, os militares, na época sob comando de Otelo Saraiva de Carvalho – só apareceu às primeiras horas da madrugada, conseguindo então evacuar todos os militantes em segurança e sem fazer mais feridos. Ao Observador, Domingos Doutel, atual coordenador autárquico do CDS e então membro da Juventude Centrista com apenas 16 anos, disse que dentro do edifício “houve grande tensão”, com os homens a “arrancarem correntes e mangas de gás” aos aquecedores para defenderem as portas interiores do Palácio de Cristal, caso os manifestantes conseguissem vencer a barreira da polícia.
Um sobressalto para os militantes do CDS que estavam a viver um período conturbado da história nacional, mas um acontecimento incompreensível para as dezenas de convidados estrangeiros presentes naquele dia no Palácio de Cristal, oriundos de vários pontos da Europa e que ligaram de forma incessante para as suas embaixadas e para os seus governos com medo de uma invasão.
Um Congresso para “oprimir as massas”
O CDS foi o segundo partido político em Portugal a ser legalizado após o 25 de abril, conseguindo aprovação do Supremo Tribunal de Justiça a 13 de janeiro de 1975 e tinha escolhido o Porto para a realização do seu primeiro congresso exatamente por ter maior implantação a norte. Apesar das dificuldades sentidas em vários pontos do país (assaltos a sedes e contestação das forças de extrema-esquerda), o partido aproveitou a sua primeira reunião magna para tentar mostrar os seus apoios internacionais, convidando por isso vários dignitários internacionais da União Europeia das Democracias Cristãs, entre os quais membros de governos europeus e deputados de vários países.
Com o anúncio do congresso, começaram a surgir ameaças à sua concretização. “A realização no Porto do Congresso do CDS faz parte de uma ofensiva da burguesia contra a classe operária, no sentido de limitar os direitos democráticos das massas” escreveram a Juventude Socialista (JS), a Liga Comunista Internacional (JCI), a Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), Partido Revolucionário do Proletariado (PRP-BR) e o Movimento de Esquerda Socialista (MES) na convocatória de uma manifestação marcada para 25 de janeiro que visava impedir a primeira reunião dos centristas, segundo dava conta o Jornal de Notícias desse mesmo dia. Ao mesmo tempo, a Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP), um grupo maoista com forte implantação no norte do país e que era conhecido pelo nome do seu jornal, o Grito do Povo, também marcou outra manifestação, com trajeto diferente mas com ponto de encontro final igual: as portas do Palácio de Cristal.
Após as primeiras investidas contra a polícia, os manifestantes incendiaram dois Mercedes que se encontravam estacionados à porta do centro de congressos – tiveram, no entanto, o cuidado de retirar um Mini que lá se encontrava por ser um carro menos burguês -, não deixando que os bombeiros chegassem às viaturas e gritando “deixa arder”. Um pouco mais abaixo, numa rua paralela, outros manifestantes encontram um Alfa Romeo com propagando do CDS e também o incendeiam. Segundo o relato do jornal Comércio do Porto, um homem disse aos bombeiros: “Vocês que tantas vezes têm arriscado vidas para defender causas de trabalhadores, hoje vivem a situação contrária. Trata-se de deixar arder um carro. Um carro de um fascista”. Estes carros queimados seriam depois empilhados para erguer barricadas contra a polícia.
Dentro do pavilhão, os avanços eram controlados através da televisão, segundo relata Domingos Doutel, e com a entrada nas instalações de polícias feridos nos confrontos. As mulheres, os mais idosos e as crianças foram levados para os anéis superiores do edifício, enquanto alguns militantes se organizavam em brigadas no piso térreo. Apesar de o Congresso ter suspendido os trabalhos há muito, os manifestantes não acreditavam e, ainda segundo o Comércio do Porto, um manifestante foi autorizado a entrar nas instalações para confirmar que já não decorria qualquer reunião de cariz político. Ao mesmo tempo, Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa ligaram a Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros.
“Telefonaram-me […] muito preocupados com as ameaças e, sobretudo, com o perigo que incorriam os seus convidados políticos estrangeiro. Pediram-me que os ajudasse e, embora estando eu em Lisboa, assim fiz. Telefonei ao Presidente da República [Costa Gomes] – para o advertir do que se passava – e para a federação do Porto do PS, pedindo-lhes para ajudarem os centristas”, relatou Mário Soares para o livro “Adelino Amaro da Costa, história de uma vida interrompida”.
Por essa altura os dignitários estrangeiros já se tinham apoderado dos telefones e ligavam de forma incessante para as suas embaixadas e para os seus governos. Entre outras figuras, estavam presentes no Palácio de Cristal, Charles-Ferdinand Nothomb, presidente do partido social-cristão da Bélgica, Geofrey Rippor, membro destacado do partido Conservador britânico, Von Hassel, presidente da União Europeia das Democracias Cristãs e vice-presidente do Parlamento Federal alemão e Uggias, deputado sueco, em representação das forças escandinavas.
Um representante da embaixada norte-americana manteve o recém-chegado embaixador Carlucci ao corrente da situação e foi informando a comunicação social sobre o ponto de situação dos esforços internacionais para libertar os congressistas – o cerco seria de resto um dos assuntos sugeridos por Kissinger para Carlucci abordar numa reunião com Costa Gomes como “não favorável à criação de confiança no exterior”, segundo aponta o livro “Carlucci vs. Kissinger, os EUA e a Revolução Portuguesa.
O fim do cerco e o alerta europeu
Às duas da manhã, e com uma visível diminuição do número de manifestantes – estariam agora cerca de 1000 pessoas às portas do Palácio, o que não impediu logo ali a realização de um comício improvisado da Ação Anti-Fascista -, Freitas do Amaral diz ter recebido uma chamada do capitão Ramalho Ortigão, do COPCON, onde este anunciava uma ação iminente dos militares para libertarem os reféns. “Já não era sem tempo. Mas o que vocês deviam ter feito, logo a meio da tarde, quando tudo isto começou, era ter dispersado a contra-manifestação e ter assegurado o nosso direito de fazermos em liberdade o nosso congresso”, respondeu Freitas do Amaral.
As tropas chegaram por volta das 5 da manhã e os congressistas foram retirados em 182 viaturas. Durante essa noite apenas duas pessoas furaram a multidão à porta do Palácio de Cristal: um casal de militantes do CDS, em que a mulher estava prestes a dar à luz e que o marido conduziu num Mini até à maternidade Júlio Diniz. Domingos Doutel lembra-se de ter saído das instalações do Congresso, escoltado pelo COPCON e escondido na mala de uma carrinha, “para se proteger de tiros”.
No dia 26 e 27 de janeiro, os principais jornais em toda a Europa davam a notícia do cerco ao I Congresso do CDS e os representantes regressados aos seus países relatavam os momentos de pânico vividos no Porto. O Times dizia que o incidente era “um mau presságio para Portugal” enquanto o Daily Telegraph sugeria que o cerco “refletia uma técnica comunista clássica”. Em Bruxelas, Von Hassel condenou “abertamente o atentado à liberdade de expressão por parte dos extremistas de esquerda quanto ao congresso do CDS”, segundo reproduz o Comércio do Porto. Em Portugal, o PCP criticou a atuação da polícia contra os manifestantes, mas Álvaro Cunhal defendeu que o seu partido “não organizou, não participou e não apoiou as manifestações”. Já o MDP-CDE disse que o CDS não merecia “solidariedade democrática”.
Durante o cerco ficaram também retidos os jornalistas que se encontravam dentro do Palácio de Cristal e alguns foram perseguidos quando tentaram sair do pavilhão e encontrar telefones desocupados – para transmitir informações às suas redações – por estarem a cobrir um evento “burguês”, segundo relata o jornalista do Comércio do Porto. No Jornal de Notícias, numa caixa de texto tem o título “missão difícil”, conta-se que os jornalistas foram alvo de “lamentáveis discriminações” e que foram “impedidos de sair” dos jardins do Palácio pelos manifestantes – sendo-lhes exigida a garantia de que o noticiário relativo aos acontecimentos “não sairia nos jornais, assim como nos órgãos de informação estrangeiros”.
Ainda é proposto a Freitas do Amaral que os trabalhos continuem no dia seguinte, mas o fundador do CDS declina. Passadas três semanas, o partido reúne-se em segredo e aprova sem pompa os estatutos e a organização inicial do partido, apesar de Freitas do Amaral ter dito a quente que o partido ia equacionar manter-se ou não como partido. Domingos Doutel, que fazia parte da Juventude Centrista de Bragança, considera hoje que o partido cresceu a partir do cerco e que este serviu de “alavanca” para a implantação do CDS e dos seus valores.
O COPCON, liderado por Otelo Saraiva de Carvalho, disse após este cerco que “nunca esteve em risco a integridade física dos indivíduos presentes nos Congresso”.