Ali estava ela, a carta, ao virar a página 35 do livro O Ramo de Ouro, um dos milhares que compunham as prateleiras da casa da família Buarque. Escrita por uma alemã chamada Anne Ernst, a carta dirigia-se ao “querido Sergio” e mencionava um filho em comum. Foi assim que Francisco Buarque descobriu que tinha um irmão alemão.
Esta é a história de O Irmão Alemão, novo romance que o músico e compositor brasileiro Chico Buarque publicou em Portugal a 16 de fevereiro, sobre o irmão desconhecido nascido na Alemanha, em 1930. O que não quer dizer necessariamente que, na vida real, as coisas se tenham passado exatamente como descrito no início do texto.
Inspirado na vida da família Buarque de Holanda, o livro não é biográfico, já que ficção e realidade convivem alegremente. O narrador é Francisco Buarque, não de Holanda mas de Hollander. O nome do pai também é real, Sérgio, mas a mãe italiana, por exemplo, é uma invenção de Chico. Como saber então onde está a fronteira? Em formato de pergunta e resposta, reunimos as verdades e as mentiras fundamentais de O Irmão Alemão.
Chico Buarque tinha mesmo um irmão alemão?
Esta é a maior verdade do livro e a fonte de inspiração para Chico escrever um novo romance, cinco anos depois de Leite Derramado. E a criança não foi fruto de qualquer infidelidade. Entre 1929 e 1930, ainda Sérgio Buarque de Holanda era um solteiro longe de imaginar que ia trazer um filho ao mundo, quanto mais oito, conheceu a alemã Anne Ernst em Berlim, onde estava colocado como correspondente de O Jornal. O bebé, Sergio Ernst, nasceu a 21 de dezembro de 1930, já Sérgio tinha regressado ao Brasil.
Como é que Chico descobriu que tinha esse irmão?
No livro, o narrador Francisco, ocasionalmente chamado de Ciccio, conta que encontrou uma carta de Anne Ernst no meio de um dos milhares de livros que o pai guardava em casa. Mas não foi assim que o escritor Francisco tomou conhecimento de que tinha um sétimo irmão nunca antes referido no seio familiar. A verdade sobre o sucedido contou-a numa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 1994. Chico tinha 22 anos e ouviu a revelação da boca do poeta Manuel Bandeira, amigo da família.
“Conheci [Manuel] Bandeira, Drummond, e conheço João Cabral. Bandeira eu conheci desde pequeno, porque ele era muito amigo de meu pai e padrinho de meu irmão mais velho, Alvaro Augusto. (…) Já mais velho quando fui morar no Rio de Janeiro, mas garoto ainda, fomos visitá-lo. Fui com o Tom e o Vinicius. Foi um encontro interessante. Ele tocou um pouco de piano e começou a contar umas histórias do meu pai. “Ah! O Sérgio”… E no meio de algumas lembranças ele mencionou “aquele filho alemão”. Eu perguntei: “Que filho?” Eu não sabia que meu pai tinha tido um filho na Alemanha. O Vinicius me perguntou: “Você não sabia?” Eu disse: “Não.” Era um pouco segredo lá em casa. Meu pai tinha tido um filho alemão antes de casar. Eu fiquei muito chocado e quando pude ir a São Paulo perguntei ao meu pai sobre isso. No começo ele não quis falar, mas depois abriu o jogo.”
Sérgio Buarque alguma vez se interessou pelo filho alemão?
Sim, e há cartas trocadas com instituições alemãs que o comprovam. As digitalizações contidas no livro são reais. Um ou dois anos depois de Anne ter o bebé, entregou-o aos cuidados da Secretaria da Infância e da Juventude, em Berlim. Em maio de 1932, a instituição mandou uma carta para o Rio de Janeiro, informando o pai de Chico Buarque de que a criança se encontrava na instituição. Na resposta, Sérgio pediu autorização para repatriar a criança para o Brasil, ou, em alternativa, caso a lei não permitisse a saída da criança da Alemanha, propunha-se enviar uma contribuição mensal de 150 mil réis. Mas, em 1933, com a chegada ao poder de Adolf Hitler e do Partido Nazi, tudo se complicou.
Numa carta datada de 24 de setembro de 1934, a Secretaria escreve a Sérgio Buarque para lhe dizer que a criança se encontra “aos cuidados do casal Günther”, Arthur e Pauline, e que os dois estão interessados em adotar a criança. Para que o processo ande, a justiça alemã quer comprovar a “origem ariana” da parte do pai e pede a Sérgio que envie a sua certidão de nascimento, a dos pais e a dos avós, a fim de “depreender a religião dos seus antepassados”. Por outras palavras, para certificar que a criança não tinha sangue judeu. Sérgio tentou cumprir o pedido mas, na época, era quase impossível obter tais documentos no Brasil. As comunicações terminam pouco tempo depois e Sérgio pai nunca mais soube do destino do Sergio filho.
Quem foi em vida o irmão alemão?
Durante toda a obra, Chico fantasia sobre o destino do irmão. Teria morrido nos bombardeamentos de Berlim? Teria sido enviado para um campo de concentração? Teria sido recrutado para o exército alemão já no final da Segunda Guerra Mundial, como soldado adolescente? Ou ainda estaria vivo, algures no mundo, quem sabe até no Brasil, em busca das suas raízes? Em maio de 2013, a pedido de Chico Buarque e da editora Companhia das Letras, o historiador brasileiro João Klug e o museólogo alemão Dieter Lange começaram a investigar o percurso do pai na Alemanha e o irmão desconhecido. Em entrevista ao canal radiofónico alemão Deutsche Welle, João Klug contou que Sergio Günther se revelou uma celebridade da Alemanha de Leste. E, para além de ter tido a mesma profissão do pai, jornalista, tinha o talento do meio-irmão brasileiro para a música, pois também era cantor.
Mas Sergio nem sempre foi Sergio. Após a adoção — conseguida mesmo sem as certidões para despistar ascendência judaica –, o casal Arthur Willy Günther e Pauline Anna Günther quis dar à criança uma vida nova e um nome também: Horst Günther. A última página de O Irmão Alemão esclarece o que aconteceu. “Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber da identidade de seus pais naturais, optando por retomar o prenome Sergio.” Após a Segunda Guerra Mundial, ficou do lado Leste do muro e entrou para o exército da República Democrática Alemã. Nos anos 50 trabalhou para o canal de televisão estatal e também se dedicou à carreira de cantor, gravando “um número incerto de discos, hoje fora de circulação”, pode ler-se na curta nota.
Sergio Günther nunca conheceu o pai, nem nenhum dos meios-irmãos. Morreu de cancro do pulmão a 12 de setembro de 1981, com apenas 50 anos. Seis meses depois morreu o pai, vítima da mesma doença.
No livro, o narrador desloca-se à Alemanha para procurar o irmão alemão. É num táxi, depois de ouvir uma das suas canções na rádio, que lhe descobre o nome: Sergio Günther. Mas este episódio nunca aconteceu na vida real. Chico Buarque viajou para Berlim, sim, mas em maio de 2013, depois de João Klug e Dieter Lange lhe terem ligado a anunciar que tinham descoberto a história do irmão. O músico e compositor brasileiro viajou com a filha Sílvia e os dois marcaram um encontro com a ex-mulher de Sergio Günther, com a filha Kerstin Prügel e com a neta, Josepha Prügel. Os Buarque ganharam novas sobrinhas.
No romance diz-se que Francisco de Hollander roubava carros na adolescência. E Chico de Holanda?
O Chico adolescente fazia tal e qual como relata no livro. Saía à noite com um amigo e os dois arrombavam e conduziam carros estacionados nas ruas. Não por necessidade, mas por diversão. Em dezembro de 1961, aos 17 anos de idade, o futuro cantor e um amigo foram apanhados pela polícia em São Paulo. Resultado: seis meses em liberdade condicional e uma fotografia de cadastro que Chico usou na capa do álbum Paratodos, de 1993.
A mulher alemã de Sérgio Buarque de Holanda foi namorada do Nobel da Literatura Thomas Mann?
Na página 44, há uma passagem que relata a entrevista que Sérgio Buarque fez ao escritor Thomas Mann em Berlim, em 1929, para O Jornal. Mann tinha acabado de ser distinguido com o Prémio Nobel da Literatura. O narrador acrescenta depois que teria sido nessa altura que Sérgio roubou a namorada do ilustre escritor, de seu nome… Anne Ernst. A entrevista é verdadeira e fez sucesso, já que Sérgio Buarque de Holanda ouviu da boca de Thomas Mann que a sua mãe era brasileira. Mas a história sobre Anne é fantasia. A mãe do irmão alemão de Chico Buarque nunca foi namorada do ilustre escritor.
A mãe de Sérgio Buarque era mesmo italiana?
Apesar das várias referências aos diálogos entre mãe e filho com termos em italiano, a mãe de Chico não se chamava Assunta nem o tratava por Ciccio. Essa referência talvez derive do tempo em que Chico Buarque esteve exilado em Itália, no final dos anos 70. No romance, Chico faz cruzar o pai, regressado da Alemanha, com uma italiana acabada de chegar ao país, refugiada do regime de Mussolini. Curiosamente, os dois países aliados na Segunda Guerra Mundial. Mas a matriarca da família Buarque de Holanda chamava-se, na verdade, Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Holanda. Os dois casaram em 1936 e ajudaram a fundar o Partido dos Trabalhadores. Maria Amélia era muito diferente de Assunta, descrita no romance como algo subserviente. A matriarca morreu em 2010, com 100 anos.
Chico tinha inveja do irmão mais velho, Mimmo, por ser o preferido do pai?
Na verdade, Mimmo não existe, nem é o único irmão. Para além do alemão Sérgio, Chico tem seis irmãos, Álvaro, Maria do Carmo, Ana, Cristina, Heloísa Maria e ainda outro Sérgio.