Um espião dos serviços secretos, um jornalista e uma empresa que contratou o espião para poder ter informações privilegiadas. O caso das “Secretas”, como ficou conhecido, aconteceu entre 2010 e 2011 e chega agora à barra do Tribunal – na próxima semana, depois de ter estado previsto para a próxima quinta-feira dia 16 de abril. No banco dos réus, cinco arguidos. O principal, Jorge Silva Carvalho, foi diretor do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa.
Ao fim de quase duas décadas como espião, Silva Carvalho optou pelo serviço privado, no Grupo Ongoing que detém 25 empresas. O problema, diz a a acusação do Ministério Público, é que continuou a usar os seus conhecimentos nas Secretas para poder ter informações que pudessem beneficiar os negócios da empresa. O caso veio a público depois da queixa de um jornalista que escreveu sobre Silva Carvalho e viu o seu registo telefónico ser passado a pente fino. Saiba como tudo aconteceu.
Quem são os arguidos que vão ser julgados e de que crimes são suspeitos?
1. Jorge da Silva Carvalho, crime de violação de segredo de Estado, crime de corrupção passiva, crime de acesso ilegítimo agravado, crime de acesso indevido a dados pessoais, crime de abuso de poder. Foi diretor do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa entre 1 de abril de 2008 e novembro de 2010. Tinha entrado no SIS em 1991. Quando se demitiu disse que queria deixar os serviços para trabalhar no setor privado.
2. João da Silva Luís, crime de acesso ilegítimo agravado, crime de acesso indevido a dados pessoais, crime de abuso de poder. Era diretor operacional do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, um funcionário da confiança de Silva Carvalho.
3. Nuno Vasconcellos, crime de corrupção ativa para ato ilícito, presidente do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da Ongoing.
4. Nuno de Freitas Lopes Dias, funcionário público, estava sob a dependência de João Luís na altura dos factos. Responde por um crime de acesso ilegítimo agravado.
5. Gisela Teixeira, funcionária da Optimus. Responde por um crime de violação do segredo profissional.
O que está em causa?
Tudo começou quando, a 7 de agosto de 2010, o jornal Público publicou um artigo assinado por Nuno Simas dando conta de “perturbações” e “descontentamento” a propósito de nomeações de elementos do SIS para o SIED, assinadas por Silva Carvalho. “O artigo tinha um pendor crítico”, revela a decisão instrutória que decide levar os cinco arguidos a julgamento e que o Observador consultou. Por outro lado, “parecia resultar de um conhecimento” transmitido ao jornalista por algum funcionário do SIS.
Perante a notícia, refere a acusação Silva Carvalho deu ordens ao arguido João Luís que obtivesse os dados de tráfego do número de telemóvel do jornalista para o período entre julho e agosto daquele ano. O jornalista tinha tentado chegar à fala com Silva Carvalho, por isso este teria o seu contacto. Entre 7 e 17 de agosto (a investigação não conseguiu apurar a data concreta), João Luís pediu ao seu funcionário, Nuno Dias, que obtivesse a referida informação junto da Optimus. O funcionário aproveitou o facto de a mulher, Gisela Teixeira, trabalhar na operadora Optimus para lhe pedir a informação solicitada. E foi o que ela fez, a 17 de agosto, extraindo a informação para um ficheiro Excel. O seu marido tratou depois os dados, transferindo-os para um documento Word ao qual chamou “Lista de Compras”. Gisela terá feito ainda uma nova pesquisa, também a pedido do marido. Para tal pediu aos seus superiores um novo utilizador.
Já na posse da informação, Silva Carvalho confrontou alguns dos seus funcionários e dirigentes com o facto de os seus números constarem na lista do jornalista Nuno Simas. Queria saber quem tinha passado informações.
O Ministério Público lembra que os Serviços de Informação não podem aceder a dados de tráfego de comunicações eletrónicas ou telefónicas. E que estes são dados “pessoais”. Mais. Tratando-se de um jornalista, todos estes dados são protegidos por lei, por se tratarem de fontes de informação.
O que são as Secretas?
Chama-se “Secretas” ao Serviço de Informações da República (SIRP), no qual se integram o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e o Serviço de Informações de Segurança (SIS). Ao SIRP cabe assegurar a produção de informações necessárias à salvaguarda da independência nacional e à garantia da segurança interna, respeitando sempre a Constituição. O SIED produz informações que contribuam para a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado Português. Destas informações são feitos estudos e documentos que forem determinados por ordens superiores. Algumas destas informações são comunicadas às autoridades responsáveis pela investigação criminal. Jorge da Silva Carvalho era diretor deste serviço. O SIS produz informações que contribuam para a salvaguarda da segurança interna, a prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem e a prática de atos possam alterar ou destruir o Estado de direito.
O que eles dizem da acusação?
Silva Carvalho – Antes de entrar na Ongoing estava vinculado ao segredo de Estado. Diz que a sua relação com o arguido Nuno Vaconcellos é meramente profissional, de quando trabalhou com ele na Ongoing. E de uma outra circunstancia que não pode revelar por estar vinculado ao segredo de Estado. Também são amigos. Nuno Vasconcellos já o tinha convidado em 2006 para trabalhar com ele, mas ele recusou. Quatro anos depois decidiu demitir-se e ir para a Ongoing. Antes fez vários contactos, incluindo a Nuno Vasconcellos, perguntando-lhe se a proposta anterior se mantinha. Proposta salarial: 10 mil euros como assessor do Conselho de Administração. Aceitou participar no projeto de criação de uma empresa de serviços partilhados no seio da Ongoing. Saiu dos Serviços de Informação em novembro de 2010 e começou na Ongoing em janeiro de 2011.
Nuno Dias – marido da arguida Gisela Teixeira, recusa-se a falar sobre ela por viverem juntos. Diz que João Luís lhe perguntou se teria acesso a uma faturação detalhada. Conseguiu obter, atribuiu à lista o nome de “Lista de compras” e nunca questionou a ordem superior que lhe tinha sido dada. Limitou-se a cumprir o serviço.
Nuno Vasconcellos – Nega tudo. Diz que é amigo de Silva Carvalho “há vários anos” e que este o terá contactado para lhe arranjar trabalho. Nuno Vasconcellos falou com o então vice-presidente Rafael Mora e com o padrasto Risso Gil. Este último opôs-se à contratação, mas Nuno Vasconcellos terá posto a condição de Silva Carvalho não voltar ao serviço público. Disse que “Ongoing Strategic Services” nunca existiu, que os “metais estratégicos” estavam fora do âmbito da empresa.
Qual a relação da Ongoing com este processo?
Segundo a decisão instrutória, Silva Carvalho começou a avaliar a hipótese de integrar a Ongoing depois do verão de 2010. O ex-funcionário do SIS, João Alfaro, assim como o seu “irmão” Fernando Paulo Santos já lá trabalhavam. Tanto eles como outros funcionários e administradores do Grupo participavam juntos em reuniões maçónicas na Grande Loja Legal de Portugal.
Para tal, o espião Silva Carvalho começou a pensar criar uma estrutura, a “OSS – Ongoing Strategic Srvices”, que funcionaria no seio da Ongoing e que iria localizar geograficamente metais estratégicos para futuros negócios. Em outubro, Silva Carvalho acabou por negociar com Nuno Vasconcellos a sua contratação. No SIED, Silva Carvalho ganhava 4 mil euros “limpos”, com carro e motorista, telemóvel e combustível ilimitados. Na Ongoing teria que ter uma situação semelhante, sendo que – diz a acusação – ficaria acordado entre os dois que Silva Carvalho iria fazer uso dos seus conhecimentos com certos funcionários nas Secretas para informações que poderiam interessar à Ongoing.
Na altura, a Ongoing estava interessada num negócio na Grécia: a construção das infraestruturas do porto de Astakos. A negociação estava a ser feita com dois empresários russos, com vista a estabelecer uma parceria. Nuno Vasconcellos terá pedido a Silva Carvalho informações das Secretas sobre os dois empresários. Mais uma vez, essa informação foi pedida ao diretor operacional, e agora arguido, João Luís. O oficial responsável pelas informações russas fez um relatório que enviou diretamente para Silva Carvalho, depois de este também o ter contactado diretamente. Esta informação constituía segredo de Estado e não podia ser passada.
Silva Carvalho também pediu informações sobre o porto grego. Também estas informações foram enviadas, depois, para Fernando Paulo Santos, da Ongoing, que o enviou a outro elemento da empresa sob a denominação “Top Secret”. A negociação prolongou-se por alguns meses, acabando por cair. Antes, em novembro de 2010, Silva Carvalho pedia a demissão, para meses depois ser contratado pela Ongoing. Com provas dadas do que poderia vir a fazer.
Segundo a acusação, durante o seu trabalho na Ongoing, Silva Carvalho manteve sempre contacto com os funcionários com quem trabalhava nas Secretas, recebendo todos os dias de um deles o resumo de várias noticias nacionais e internacionais que depois reencaminhava para outros responsáveis da Ongoing, onde era membro do Conselho de Administração.
Que outras informações pediu Silva Carvalho ao SIED?
Na acusação consta ainda o pedido de informações sobre um empresário e as suas empresas. Este empresário era o ex-marido da companheira de Fernando Paulo Santos, que pediu ao ex-espião que obtivesse estas informações. Ele assim o fez. Há ainda, em maio de 2011, um pedido de informações sobre os aviões líbios que tinham estado em manutenção em Portugal. Este terá sido uma jornalista que pediu a Silva Carvalho. Ele, como habitualmente, delegou a tarefa no seu homem de confiança João Luís.
Quem são os assistentes no processo?
Segundo a lei, podem constituir-se assistentes os ofendidos, desde que maiores de 16 anos, e qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência ou outros relacionados com corrupção. Bárbara Torres dos Reis, diretora do Público, assistentes apenas em relação aos crimes de corrupção e abuso de poder, por oposição do próprio Silva Carvalho. e Nuno Simas, jornalista do Público, relativamente a todos os crimes, por ser o ofendido.
O que são os crimes em causa?
Corrupção passiva – o funcionário que por si ou interposta pessoa pedir ou aceitar para si ou para outro uma contrapartida para praticar determinado ato. Pena de um a cinco anos.
Corrupção ativa – o funcionário que por si ou interposta pessoa der ou prometer para si ou para outro uma contrapartida para praticar determinado ato. Pena de um a cinco anos. (a versão em vigor à data dos factos era de seis meses a cinco anos)
Corrupção passiva para ato ilícito – o funcionário que por si ou interposta pessoa der ou prometer para si ou para outro uma contrapartida para praticar determinado ato ou omissão contrários aos deveres do cargo. Pena é de 1 a oito anos, atenuada se o agente contribuir com a investigação para encontrar outros suspeitos.
Abuso de poder – O funcionário que abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter benefícios ou de prejudicar alguém. Pena até três anos ou multa.
Violação de Segredo – Quem tomar conhecimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento através do seu trabalho. Pena até um ano ou multa.
Acesso Ilegítimo – quem aceder sem permissão legal a um sistema informático. Pena de prisão até um ano.
Acesso Indevido – Quem aceder, sem autorização, a dados pessoais cujo acesso lhe esteja vedado. Pena até um ano ou multa.