O jornal espanhol El País publica esta terça-feira a última grande entrevista a Günter Grass, o escritor, poeta, escultor, desenhador e artista que desdobrou a sua obra nas memórias difíceis e envergonhadas de um século de guerras. Morreu ontem, aos 87 anos, na cidade alemã de Lübeck, onde vivia. Mas não sem antes deixar escrita, por uma caneta que não a sua, a sua visão aterradora do que é e do que ainda pode vir a ser o século XXI, não melhor e não menos bélico do que o anterior. Para o Nobel da Literatura, a questão não é tanto saber se estamos perante uma nova guerra, porque isso é evidente, mas sim quando começou. “Se repetirmos os mesmos erros do passado, podemos vir a entrar numa III Guerra Mundial quase sem darmos por isso”, vaticinou

“Fomos marcados individualmente pela II Guerra Mundial. Mas o mais terrível são os efeitos a longo prazo, que seguem, seguem e continuam a notar-se. Por isso é que a minha geração está mais atenta aos problemas atuais, já que à nossa volta tudo diz que já entramos na III Guerra Mundial, só não conseguimos dizer quando começou”, disse o escritor ao jornalista Juan Cruz, numa conversa sobre política, poesia, e o ponto onde as duas se cruzam, que teve lugar no dia 21 de março.

A verdade é que, nos dias de hoje, “há guerra por toda a parte: por um lado temos a Ucrânia, cuja situação não melhora em nada, em Israel e na Palestina a situação está cada vez pior; há ainda o estado em que os americanos deixaram o Iraque; as atrocidades que o exército do Estado Islâmico e o problema da Síria, onde morrem milhares de pessoas e o drama já quase desapareceu dos jornais…”. O receio de Günter Grass era de que, perante o cenário já tão preocupante, viéssemos a “cometer os mesmos erros do passado e, quase sem darmos conta, entrássemos numa nova guerra mundial como se estivéssemos sonâmbulos”.

Para inverter o rumo já tão avançado das coisas, o escritor alemão dizia que a única forma era através da recordação sistemática da história. E arriscava uma versão ultra simplificada, onde identificava um ponto de partida para a origem das guerras dos dias de hoje:

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“Depois da I Guerra Mundial cai o império Otomano, dividem-se os Balcãs e o petróleo torna-se num elemento muito importante da história. O Iraque foi uma invenção dos poderes coloniais vitoriosos dessa guerra. A Palestina era um protetorado inglês, a Síria era um protetorado francês. E o Holocausto desencadeou o problema na Palestina. No fundo tratou-se tudo de anexações territoriais e, até hoje, a causa de todo o problema tem sido a atitude dos Estados que saíram vitoriosos da I Guerra Mundial”.

Questionado sobre se tinha esperança de que o Homem do século XXI fosse melhor do que o do século XX, Günter Grass manteve-se pessimista perante o futuro, apesar de negar tratar-se de pessimismo mas sim de conhecimento empírico. “Baseio-me na experiência e nos erros que temos cometido, e isso é algo que se pode comprovar historicamente, e isso leva-me a ter dúvidas de que o Homem vá melhorar e ser capaz de aprender com os erros do passado”, dizia.

Um deles, um dos maiores, foi o da Alemanha. “Porque o Holocausto e o genocídio, esses crimes horríveis, constituem uma história que não tem fim”, dizia na altura. Em março de 2014, no conforto da sua casa em Lübeck, junto da esposa e dos seus livros, o escritor alemão pegou ainda na Grécia para a apontar como a mais recente vítima da Alemanha. E, de certa forma, a prova de que a história se repete e as chances de a Humanidade aprender de facto com os seus erros são diminutas.

“Agora vemos o caso da Grécia, e deparamo-nos outra vez com o problema dos horrores causados pelos soldados alemães durante a ocupação…essa história persegue-nos e persegue-nos…”. No fundo, foi precisamente essa “dor” da história sem fim que motivou o seu trabalho.

No final, resumiu: “A dor é a principal força que me faz trabalhar e criar”.