Início de noite de domingo, o Coliseu esgotado no regresso a Lisboa dos germânicos Kraftwerk. À entrada, duas filas compactas e lentas fizeram atrasar dez minutos a entrada em palco do quarteto, mas foi às 21h00 em ponto que se começaram a ouvir os primeiros sons, ainda com as luzes acesas, pingos de água eletrónicos, um aquecimento que durou dez rápidos minutos, altura em que o pano se afastou e deixou ver o palco. E ali estavam já os quatro homens, cada um em frente da sua consola de máquinas, vestidos com fatos pretos e linhas refletoras, pose hirta e quase robótica, tudo parte do mesmo cenário.

O que se assistiu a noite passada no Coliseu de Lisboa (e que se vai repetir esta segunda-feira na Casa da Música, no Porto – também esgotado) é uma encenação milimétrica de música e efeitos visuais. Ao vivo, a componente visual sempre esteve a par da música, em toda a carreira os Kraftwerk sempre fizeram questão de casar as duas vertentes. Foi o que ali se viu, desta vez com recurso à tecnologia dos dias de hoje.

E quem ali foi a pensar que o “3D” (3 dimensões) que dá o nome à digressão ia ser apenas fogo-de-vista, terá ficado rendido logo no arranque. “Numbers” foi a banda sonora de uma mancha de números que entrou pelos olhos adentro, o efeito 3D foi absolutamente real e os óculos distribuídos à entrada essenciais para aproveitar o espetáculo na totalidade. Os pedaços de cartão eram bastante desconfortáveis, mas quase ninguém os tirou.

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Eram milhares de óculos brancos e cabelos da mesma cor, mas também estavam ali muitos que ainda não eram nascidos quando em 1970, Ralf Hütter e Florian Schneider criaram os Kraftwerk. Ao longo dos anos a banda de Düsseldorf sofreu muitas alterações e da formação original apenas resta Ralf Hütter, o homem que dá a voz às palavras simples que compõem as letras (ou as ideias) da dezena de álbuns editados em quatro décadas e meia.

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Mas a simplicidade das palavras é também o que dá força à mensagem que passa em cada tema, neste espetáculo muito apoiado pelos efeitos visuais (ainda que com algumas falhas e “ecrãs azuis” de erro). Como em “The Man Machine” (a orquestração do homem-máquina) ou no seguinte “Spacelab”, onde tiveram o cuidado (e a graça) de colocar no centro da imagem, vista da “nave espacial”, a península ibérica e no final, a praça do Rossio. E ainda em “Radioactivity” (um dos momentos mais aplaudidos), onde acrescentaram em letras gordas o nome Fukushima, mais um para a lista dos desastres nucleares. Cada tema rescrito pela oportunidade e atualidade.

Musicalmente, os Kraftwerk não trouxeram nada de novo. Assistiu-se ao desfilar dos clássicos: “Computer World”, “The Model”, “Tour de France” e “Autobahn” são apenas alguns exemplos (consulte o alinhamento completo do espetáculo no Coliseu de Lisboa). O tema que dá o nome a quarto álbum da banda (de 1974) foi, provavelmente, o momento alto da noite. Visualmente, os gráficos 3D têm um desenho antigo, a fazer lembrar as primeiras imagens produzidas em computador, de linhas retas e até grosseiras. É um detalhe transversal nesta apresentação, utilizar a tecnologia moderna mas respeitar, de alguma forma, a idade da música.

Pioneiros e meticulosos, na música e no espetáculo. E patriotas. Em “Autobahn” (auto-estrada) desfilaram animações dos Carocha (Volkswagen), Mercedes e Porsche. Detalhes por todo o lado, até nas matrículas: D-KR-70 (VW) — ano da formação da banda — e D-KR-74 (Mercedes) — o ano do álbum. O vídeo/tema acaba com o Carocha a sair da autobahn e lá estava a placa, Ausfahrt (saída da via). Um deleite, este rigor germânico.

kraftwerk_autobahn-coliseu

A imagem aparece desfocada porque está adaptada à visualização 3D

45 anos. É mais ou menos esta a idade da música eletrónica como a conhecemos, foi no início da década de 1970 que se começou a desenhar o padrão sonoro que acabou por se tornar a fundação do género musical. Em 2015, o que está realmente na ponta dos dedos dos Kraftwerk pouco interessa. Todos já na casa dos 60 anos, mantiveram sempre uma pose séria e robótica. E bastava que estivessem, como elementos de um cenário maior.

Não houve interatividade com o público, apenas som e imagem e as paragens foram curtas. Num ou noutro momento, em que os segundos a negro se prolongavam um pouco mais e onde parecia que nada se passava, sentia-se ainda assim um efeito de antecipação, talvez, o Coliseu estava inundado de pessoas quase paradas mas (provavelmente) deslumbradas com tamanha alucinação visual e sonora. Muitos dos presentes assistiram ao nascimento da música eletrónica e aqueles ali no palco foram os pais.

Passou uma hora e quarenta minutos quando caiu o pano, mas as luzes da sala mantiveram-se apagadas. No primeiro encore, não foram os Kraftwerk que apareceram em palco, mas as réplicas dos quatro homens-robô vestidos de vermelho a encenar o tema “The Robots” (1981). A música gravada e os efeitos visuais (3D) puxados ao máximo. Logo de seguida, no segundo encore, o abanar do corpo da assistência passou a dança. A batida acelerou e foram mais cinco temas até à despedida. As palavras que surgiam na tela gigante eram honrosas e provocadoras: Detroit (a cidade norte-americana, a meca do techno) e Germany, “is so electro” ouvia-se. Os Kraftwerk fazem-no porque podem, afinal de contas foram eles que começaram com a brincadeira.

“A música eletrónica e industrial vai continuar”, o mote de “Musique Non Stop”, o tema que encerrou a atuação. Um a um, fizeram um breve “solo” de eletrónica (como costumam fazer os músicos das bandas Rock) e saíram do palco, sem grandes despedidas, apenas uma vénia e um sorriso. Ralf Hütter, o único membro da formação original, foi o último a sair. Disse Goodbye auf Wiedersehen e estas foram as únicas palavras que dirigiu ao público durante toda a noite. Mas mereceu um grande aplauso e retribuiu com uma longa e simpática vénia. Foi, provavelmente, um até sempre.