Para Maria Rueff, o primeiro encontro foi marcante: “Tinha 14 anos quando li «Memória de Elefante» de António Lobo Antunes. Foi a minha primeira paixão literária, porque foi como se ele me tivesse ensinado a olhar o mundo”. A atriz portuguesa, com vinte anos de carreira marcados pela comédia, tem agora a oportunidade de retribuir, com gratidão, as “frases extraordinárias” com que o escritor português narrou “os simples, os normais” que tanto a marcaram.
Até 16 de maio, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, esta Maria transforma-se em outras Marias que Lobo Antunes transpôs para os seus livros, num monólogo do “quotidiano sublime” com vozes femininas trágicas e cómicas. Esta peça é também a realização de um desejo antigo, ao juntar numa produção do Teatro Meridional dois antigos colegas da Escola Superior de Teatro: Maria Rueff e Miguel Seabra.
“Eu acho que Deus escreve torto por linhas direitas e direito por linhas tortas”. É desta forma que o encenador e diretor artístico da companhia de teatro, resume esta “convergência natural” que, cinco anos após uma primeira conversa sobre levar as palavras de Lobo Antunes ao palco, se tornou realidade. “A Maria queria fazer uma espécie de ponto de situação da sua carreira, um balanço da sua viagem como artista”, diz Miguel Seabra. Entre conversas, datas e um verão de 2014 que firmou o assunto, o Teatro Meridional apresenta a sua 50ª produção. O desejo de Maria encaixava nas linhas-mestras da companhia de teatro: é um texto original, baseado na obra de um escritor lusófono, que lança um autor para o “mar alto” da escrita dramatúrgica.
“Custa muito pedirmos uma mentira e darem-nos a verdade”
Com vários anos passados a escrever para Maria Rueff, em projetos como Herman Enciclopédia e o Programa da Maria, não é por acaso que dramaturgo convidado e atriz escolham a mesma frase para definir o que se mostra em palco.
Coube a Rui Cardoso Martins, escritor e jornalista com profundo conhecimento da obra de Lobo Antunes, de quem também é amigo pessoal, a tarefa de recorte. “Escrevi com tesoura, com os livros todos no chão da sala, a ler e a reler frases. Peguei em partes maiores de carne, de texto, e desde a entrada do primeiro guião foi uma questão de retirar e limpar aquele todo aproveitável.” Para Cardoso Martins, era uma questão de respeito e da falta dele, ao navegar numa “obra imensa”, desde que o António acedeu ao pedido de Maria.
Quando a atriz o convidou a trabalhar nesta adaptação, embora nunca tivesse pensado em algo do género, achou que “fazia todo o sentido”. “Lobo Antunes tem uma voz viva, a viver, de vivência”, diz o dramaturgo, e nesta que espera ser uma “hora muito intensa de espetáculo”, há pedaços desta “voz única que dá saltos, em que as vozes de muitas mulheres se misturam”. Dos romances às muitas crónicas revisitadas para este projeto, Rui Cardoso Martins destaca as “palavras fáceis e muito comuns” que o autor utiliza, embora de “construção densa”, e que facilitam a adaptação para o palco.
O teste do arrepio
Está lá «Memória de Elefante”, “A Exortação dos Crocodilos” e muitas outras palavras que obrigam Rueff a “saltitar de registo, entre o cómico e o trágico, muito depressa. O mais desafiante é a gestão de tudo, das cores fortes destas mulheres, em que os registos se tocam”, confessa a atriz. Agora devem ultrapassar o “teste do arrepio”, porque, como Lobo Antunes explicou a Rui Cardoso Martins, “o arrepio [que o público sente ao ver uma peça de teatro] é o maior e mais difícil dos críticos”.
Para Maria, que se assume uma “humilde leitora”, “arrepios são muitos, porque eu não conheço nada sobre o estudo da literatura dele, mas sempre quis pôr em cena aquelas palavras”. No fundo, como resume Cardoso Martins, este foi um “processo fácil, com material fascinante e muito complexo”, em que Maria Rueff foi “quebrando a devoção” ao primeiro amor que os livros que lhe deram, “porque tinha que ser para ela, só ela o poderia fazer”.