Aos olhos do desporto, Dutee Chand tem um problema: testosterona a mais. Aos 18 anos, Dutee é campeã nacional da Índia nos 100 metros em atletismo e é considerada uma esperança para os Jogos Olímpicos. Mas em 2014 foi impedida de competir na categoria feminina por exceder o nível de hormonas masculinas naturais presentes no corpo feminino, uma medida definida pela Federação Internacional de Atletismo (IAAF) como condição para as atletas.
O caso chegou ao Tribunal Arbitral do Desporto que, desde logo, afirmou que distinguir homem e mulher não é um processo assim tão linear. De um lado estava Dutee Chand, do outro a Federação Internacional de Atletismo. Depois de alguma análise, o tribunal mandou suspender as “regras hormonais” da IAAF, que ditam a “excessiva produção de testosterona” como critério para determinar o género e, portanto, decidir se uma atleta mulher pode, ou não, competir como mulher. O IAAF estabeleceu em 2011 que as atletas têm de ter níveis de testosterona abaixo dos 10 nmol por litro – o limite inferior para os homens. O tribunal, sediado em Lausanne (Suíça), chegou à conclusão que o nível de testosterona natural presente nos corpos é um fator “insuficiente” para justificar que algumas mulheres não possam competir com outras mulheres.
O que me fizeram no ano passado não é justo. Tenho direito a correr e a competir. Mas esse direito foi-me negado. Fui humilhada por uma coisa de que não tenho culpa. Espero que mais nenhuma mulher passe por aquilo que eu passei; obrigada por esta decisão”, disse Dutee Chand esta segunda-feira.
Mas como definir a fronteira entre homens e mulheres? No caso do desporto, a reflexão tem um tempo limite. O tribunal do desporto deu dois anos à IAAF para conseguir provas científicas das vantagens que uma atleta tem por ter mais testosterona. O assunto divide o mundo do desporto.
A atleta britânica Paula Radcliffe testemunhou a favor da IAAF e defendeu que ter níveis mais elevados de testosterona “torna a competição desigual, num patamar que transcende o talento e a dedicação. Os corpos (com mais testosterona) reagem de forma diferente, com mais força do que as mulheres com níveis normais, e isso torna a competição injusta”, defendeu a maratonista. O tribunal esclareceu contudo que não conseguiu concluir se ter mais testosterona beneficiava assim tanto essas mulheres que fosse necessário excluí-las da competição, acrescenta o New York Times. Assim, requereu mais estudos sobre o assunto. Se não forem apresentadas provas suficientes após dois anos, o critério da “testosterona a mais” será anulado em definitivo. Agora, Dutee Chand vai poder competir e a IAAF, bem como o Comité Olímpico Internacional, vão ter de arranjar uma forma justa e não prejudicial de definir quem é mulher.
Apesar de os eventos de atletismo dividirem os atletas em homens e mulheres, o sexo (género) nos humanos não é binário. Não há só um único fator a determinar o sexo /género”, considerou o tribunal.
O caso de Dutee não é novo. Há quase 30 anos, María José Martínez Patiño foi obrigada a abandonar o atletismo por ter mais testosterona do que a maioria das mulheres. A atleta foi mesmo “humilhada publicamente” pelas colegas, lembra o El País, depois de, em 1986, ter sido excluída da equipa espanhola que iria aos Jogos Olímpicos do verão de 1988 por “chumbar” no teste de género. A partir daí, a ex-atleta escreveu vários artigos sobre o episódio e é citada frequentemente quando o assunto é os testes de género ou a privacidade dos atletas.
O caso da atleta Caster Semenya, 24 anos, é bem mais recente. Foi em 2009 que a sul-africana ganhou a medalha de ouro nos 800 metros e à vitória seguiram-se acusações de que Caster tinha tido “vantagem” em relação às adversárias por causa dos níveis elevados de testosterona. Foi depois submetida a testes de verificação de género “humilhantes”, como classifica o Telegraph. Caster Semenya voltou às corridas em março de 2015 e espera qualificar-se em agosto para os campeonatos mundiais. “Acho que o mais importante é que ela está livre de acusações, é consistente e está feliz a fazer o que está a fazer”, disse o treinador de Caster àquela publicação.
Enquanto umas lutam para não serem discriminadas pela quantidade de hormonas que têm, outras resignam-se e arranjam formas de solucionar o problema. Nos Jogos Olímpicos de Londres, quatro mulheres decidiram reverter a produção hormonal e fizeram cirurgias, terapias de substituição com estrogénios e reduções do tamanho do clitóris. Estas soluções foram sugeridas a Dutee Chand, mas não foram aceites. Dutee referiu que não tinha de ser obrigada a fazer uma cirurgia porque não estava doente.