“Ruínas”, a peça da autora norte-americana Lynn Nottage, inspirada em histórias reais de refugiadas congolesas violadas durante a guerra, estreia-se esta quarta-feira, em Portugal, com encenação de António Pires.
Em cena, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, a peça é um musical que “dá rosto a pessoas que estão em situação de guerra, aqui, neste caso, mulheres”, como contou o encenador à agência Lusa.
A partir de relatos recolhidos por Lynn Nottage num campo de refugiados no Uganda, junto de mulheres que foram violadas por militares durante a guerra civil na República Democrática do Congo, a peça ganha outra atualidade com a vaga de refugiados na Europa.
“Está-se a falar muito de refugiados, fala-se muito disto, de guerra, há aqui um cheiro a guerra no mundo muito próximo. (…) Isto pode dar um rosto. Quando vemos pessoas metidas dentro de um barco de borracha, o que vai fazer é afundar-se. Tem mais hipótese de afundar do que atravessar o Mediterrâneo. Questionamo-nos quem é que se mete ali dentro com a família. Estes relatos mostram um bocadinho o muro, o que é que está a empurrá-las para o barco”, afirmou o encenador António Pires.
“Ruínas”, estreado nos Estados Unidos em 2007 e também inspirado em “Mãe coragem”, de Bertolt Brecht, valeu à escritora e dramaturga Lynn Nottige o prémio Pullitzer em 2009. António Pires leu o texto há uns anos e imediatamente o quis levar à cena.
“Os espetáculos vêm ter connosco. Isto diz-me alguma coisa. Nasci em Angola e, aos oito anos, vim-me embora com os meus pais. Há aqui um lado muito pessoal, uma coisa que me toca, esta coisa dos horrores da guerra, é uma coisa que sempre me acompanhou na vida. Eu sei que isto existe, que é mesmo verdade, que não é lá longe e que nos pode acontecer a qualquer momento”, contou.
O encenador tem essa perceção de proximidade da peça também do lado do elenco, composto maioritariamente por atores e cantores africanos ou de ascendência africana.
Em palco estarão mais de uma dezena de pessoas, entre os quais os cantores Mistah Isaac, Timóteo Tiny (NBC), Adriano Diouf, Elizabeth Pinard e Selma Uamusse, e os atores Zia Soares, Daniel Martinho e Matamba Joaquim. A peça tem música adicional de Filipe Raposo e letras de Kalaf.
“Quase todos estes atores aqui, por serem negros, por terem nascido em África ou porque os pais viveram na pele, tudo isto é-lhes muito próximo de alguma maneira. Nunca falámos disso, porque destas coisas não se fala, nem nos ensaios. Sabemos todos do que estamos a falar”, explicou.
Uma das personagens centrais da peça – Sophie, uma vítima da guerra que vai cantar para um bordel – é interpretada pela cantora moçambicana Selma Uamusse.
“É uma peça que fala sobre mulheres, mulheres negras – nunca fui ver uma peça com quatro mulheres negras enquanto protagonistas”, disse a cantora à agência Lusa.
“Fala sobre uma coisa que o António [Pires] refere muitas vezes: ‘Não tenhas muita pena da personagem’ e isso encontro no caráter dos africanos. Passamos por sofrimento, mas não vivemos no sofrimento, há sempre qualquer coisa para ultrapassar. Há um ‘statement’ sobre a força que as mulheres têm e esse é o lado com que mais me identifico, com a mulher forte”, afirmou Selma Uamusse à agência Lusa.
Num cenário que recria o bar de um bordel, com mesas e bancos cor de barro, um piano, um telhado com quatro chapas e uma cascata de ramos de seringueira, a encenação de António Pires deixa de lado muitas das referências diretas do texto à guerra civil congolesa: “Quis que fosse uma África mais lusófona. Queria que fosse uma coisa próxima das pessoas que vêm ver”.
“Ruínas” estará em cena no São Luiz até ao dia 16, seguindo depois para uma versão mais intimista no Teatro do Bairro, também em Lisboa, ainda este mês.
Em complemento à peça, nas ruas do Bairro Alto e do Chiado, estarão expostas, a partir de quinta-feira, as fotografias das seis mulheres que inspiraram a peça de Lynn Nottage, captadas por Tony Gerber.
Na quinta-feira, no Teatro do Bairro, Tony Gerber participará num debate sobre “Refugiados de guerra”.