(Artigo publicado originalmente em 10 de Janeiro de 2016 e agora republicado após a morte do pintor)

“O resultado final não é amargurado, não é dorido, não é triste: é uma celebração da vida”, escreveu António Lobo Antunes sobre o amigo Júlio Pomar, há mais de uma década. Este domingo, com a mesma energia e lucidez, Pomar chega aos 90 anos.

Para assinalar o aniversário, Sara Antónia Matos, diretora e curadora do Atelier-Museu Júlio Pomar, aceitou escolher e comentar para o Observador 10 obras paradigmáticas do artista nascido em Lisboa a 10 de janeiro de 1926.

“Um par de óculos, dois olhinhos muito pequenos, testa mais ou menos redonda, cabelos que agora são brancos, mais ou menos despenteados, nariz grosso, bigode ralo, barba também rala. E o meu nome é Júlio Pomar.” Assim se retratava o artista, há alguns anos, num documentário da RTP.

Estudou na Escola de Artes Decorativas António Arroio e na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e do Porto. Ainda hoje é reconhecido como pintor neorrealista, interessado na arte como forma de protesto social.

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Passa-se isso nos anos 40 e 50, quando Pomar está com os oposicionistas do Movimento de Unidade Democrática (MUD Juvenil) e acaba preso pela polícia política – quatro meses no Forte de Caxias, ao lado do antigo Presidente da República Mário Soares.

São desse tempo o “Gadanheiro” e “O Almoço do Trolha”, pinturas de rutura com o conservadorismo da época e de clara mensagem contra a ditadura.

Na década de 60, quando se muda para Paris, por razões pessoais e não políticas, está noutra fase. “Vai progressivamente abandonando a orientação política do seu trabalho” e evolui para “um novo figurativismo”, sob influência da pintura europeia do pós-guerra, analisa a historiadora de arte Joana Baião.

Pomar tem 90 anos, mais de 70 como artista. Nas escolhas de Sara Antónia Matos, que incluem obras de 1946 a 2011, é possível observar as mudanças de estilo e de técnica, mesmo quando os temas se repetem. São trabalhos de pintura e desenho que podem ser vistos nesta fotogaleria. A descrição vem logo a seguir.

10 fotos

1. Mural para o Cinema Batalha, no Porto, 1946-47

“As obras deste período enquadram-se no chamado movimento neorrealista. O artista é preso pela PIDE, antes de o mural estar concluído. O governo impõe a eliminação definitiva das pinturas murais do Cinema Batalha em junho de 1948, um ano depois da inauguração do edifício. As poucas fotografias que hoje existem desta pintura, feita diretamente sobre a parede do edifício, deixam entrever o arrojo do artista, na altura sem a experiência que hoje tem, ao aceitar um desafio com tanta responsabilidade artística e social.”

2. “Estudo em Vermelho”, 1964

“O conjunto de obras dedicado ao tema das ‘corridas’ e ‘entradas’ – nomeadamente através da representação de cavalos, corridas de jóqueis, entradas de touros e campinos –, são para Pomar motivo de intensa exploração do movimento na pintura. Pomar está em movimento e imprime movimento às suas ferramentas. Movimenta-se a pintar e move espíritos a escrever. Busca o movimento e este, como se lhe escapasse já ao controlo, ganhando autonomia, avança das suas telas em direção ao espaço do espectador.”

3. “Le Bain Turc (d´après Ingres)”, 1968

“Manifesta erupção do corpo, do sexo e do erotismo – importantes eixos na obra do artista –, é uma das obras em que Pomar assume, no título, um dos mestres que lhe servem de referência. Pomar mostra que a cor plana preenche formas, proporcionando-lhes um recorte preciso, sendo isso suficiente para conferir estrutura ao quadro. Esta e outras pinturas decorrentes desta fase podem considerar-se o ponto de viragem em relação à pintura da fase anterior, onde o gesto e a pincelada livre são dominantes.”

4. “Tigre”, 1980

“É uma das suas obras paradigmáticas: símbolo de força e ícone de sensualidade e erotismo, no universo de Pomar. Não se pode, por isso, deixar de falar sobre a componente erótica na obra do pintor, que estará mais na dimensão textural, e nas espessuras da matéria pictórica que este tigre encena, do que propriamente na figuração explícita e objetiva de corpos entrelaçados.”

5. Retrato do Presidente Mário Soares, 1992

“Ao longo de todo o seu percurso, Pomar fez retratos e autorretratos, podendo considerar-se que investiu desde sempre sobre um dos géneros mais canónicos da história da Arte. O retrato de Mário Soares é um dos mais emblemáticos, não só pelo novo estilo e informalidade que introduz na galeria de retratos presidenciais, como porque, na verdade, o então presidente era amigo de longa data, tendo partilhado episódios e momentos históricos marcantes, de que é exemplo o período de cárcere, em 1947.”

6. “Mascarados de Pirenópolis nº 15”, 1987

“De grande pujança cromática, faz parte da série de 15 pinturas com o mesmo título em que o pintor representa as festas e os rituais associados às festas do Divino Espírito Santo, a que assistiu no Brasil. Esta obra, assim como as pinturas que dedica aos índios da comunidade amazónica, nomeadamente ‘Os Ticxão’, são pinturas de grande escala, podendo chegar a quatro metros de comprimento. Demonstram como as forças telúricas se transferem para o suporte da tela.”

7. “Fernando Pessoa” – estação de metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa, 1983-84

“Camões, Bocage, Almada e Pessoa foram escolhidos por Júlio Pomar para habitar a estação de metro do Alto dos Moinhos. Pessoa surge triplicado, duplicado, à mesa de café, engraxando sapatos, aludindo à vida de todos os dias, ao longo de um percurso subterrâneo que muitos habitantes da cidade fazem todos os dias. Este conjunto de desenhos, nomeadamente a figura de Pessoa, encontra-se em diferentes suportes do quotidiano: nos passaportes dos cidadãos portugueses e em alguns cartões multibanco.”

8. Desenhos para “Guerra e Paz”, de Tolstói, 1956-1958

“Trabalho de ilustração, exemplo de uma relação profícua entre o trabalho plástico e a literatura. Neste domínio, a obra de Pomar adquire um humor e uma ironia simultaneamente mordazes e divertidos. Não subjugando a ilustração ao texto, os desenhos, ilustrações e pinturas, denotam súbitas explosões de humor.”

9. “Carlos do Carmo”, 2011

“Sublinhando a importância da música e da poesia, não podiam deixar de se apresentar as pinturas que, nas últimas duas décadas, Júlio Pomar dedicou ao universo do fado e particularmente aos seus intérpretes: Carlos do Carmo, Cristina Branco, Mariza ou mesmo Alfredo Marceneiro. Em algumas, este aparece ao lado de Fernando Pessoa, realçando a importância do diálogo entre ‘cultura popular’ e ‘cultura erudita’. Para o pintor, são duas vertentes da cultura inseparáveis.”

10. “Burro Tocando Guitarra”, 2011

“Dentro da temática do fado, a representação da guitarra assume uma relevância particular porque ela passa a ser um instrumento de manifestação ou de divertimento desse animal a que, nos últimos anos, Pomar dedicou especial atenção: o asno. Aparece representado de frente (como a maioria dos animais em Pomar). Ao invés da triste figura que habitualmente conhecemos deste animal, os seus burros de Pomar cantam, divertem-se, carregam guitarras e são portadores de um divertido sarcasmo quixotesco.”