Com os PAUS ainda acontece hoje o que acontecia à volta de 2009. Nesse tempo, a banda era como uma daquelas relações que começam por existir só de madrugada para pouco depois já envolverem trocas involuntárias de escovas de dentes. Era um “isto é engraçado, deixa ver onde vai parar”, que depois deu em discos, concertos, digressões e muitos fãs. Um EP e dois álbuns depois e está tudo na mesma. Os bateristas cantadores Quim Albergaria e Hélio Morais, mais Makoto Yagyu no baixo e Fábio Jevelim nas teclas e outros sons que o momento exija, todos eles com muito mais para fazer além dos PAUS (Linda Martini, If Lucy Fell, Riding Pânico, Man Eater, enfim), mantêm-se fiéis à génese de todo este rock espacial que tocam e que agora resulta no novo “Mitra”. Perguntamos quando é que decidiram que era tempo de voltar ao estúdio. Albergaria esclareceu-nos: “Foi o tédio.” Todos sabemos que é a melhor razão para dar a volta a quase tudo.

Continuando nos “porquês”, Hélio Morais volta atrás, até ao tempo em que o nervo de voltar ao estúdio começou a incomodar: “Tocámos tanto o ‘Clarão’ [o álbum anterior]… Quando fizemos a última tour pela Europa, no início do ano passado, pensámos que íamos tocar um mês inteiro outra vez as mesmas músicas. Sabíamos que tínhamos de fazer coisas novas e a ideia era começar logo em Maio. Mas depois houve a questão das empreitadas e só começámos em Setembro.”

Não há quem nunca tenha tido uma empreitada pelo caminho mas esta dos PAUS foi especial. Um estúdio que é sala de ensaios para umas quantas bandas e ponto de encontro para criatividades, quantas mais melhor, venham elas de onde venham. Linda Martini e You Can’t Win Charlie Brown são as outras bandas com lugar cativo mas há espaço para quem queira por lá praticar as suas artes e gravar outras tantas.

CAPA_HIGH_RES

“Mitra” é um lançamento da Universal

Como acontece com quase tudo o que é gente, uma casa é uma casa e não há outro lugar igual. Com os PAUS é o mesmo. Não que isso mude totalmente quem são e o que fazem, mas iguais não ficaram. Albergaria explica: “Antes do Haus existir enquanto espaço já havia o espírito comunitário que representa. Há sempre algo a acontecer, toda a malta que gravita à volta disto faz a diferença. O espaço vem potenciar uma relação ainda mais próxima entre esta gente toda, com encontros diários, ideias, partilhas, aquele ‘ouve lá isto, achas que faz sentido?’ que é tão importante. O Haus potenciou o disco, não o inspirou porque o espírito já cá andava.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Já que falamos de disco, continuemos caminho. “Mitra” traz a mesma onda rufia que os PAUS têm marchado desde o início. Um rock de garagem que é tão matemático como selvagem. Essencialmente rítmico, mas agora com mais balanço, mais espaço entre os diferentes caminhos que um só tema pode ter. Como costuma acontecer num formato de canção mais habitual mas, ao mesmo tempo, sem o assumir por completo. É mais desafiante sem que nada tenha sido domesticado e isso é o melhor dos vários mundos que os PAUS habitam. Pelo meio, há mais vozes, com mais protagonismo. Porquê? “Porque aconteceu assim”, explica Quim. “Não há aqui grandes planos, não há nada pré-definido, não é esse o método que seguimos”, acrescenta Makoto Yagyu. “Marcamos dez dias de estúdio e em dez dias temos que ter o disco gravado.”

[Veja aqui os PAUS a tocarem uma música no estúdio Haus]

[jwplatform KFBm5v15]

Foi mais ou menos isso que aconteceu. Uns 12 dias para varrer tudo o que era parte instrumental, está feito, não se fala mais nisso – “até porque quanto mais se fala pior é”, recorda Makoto, experiente homem de bandas e estúdios, produtor técnico e outros títulos do género, dêem-lhe um estúdio, ele dar-vos-á um disco. Depois, com as vozes foi preciso mais tempo, mais cuidado e atenção de todos. Os PAUS não são territoriais, são até o contrário. Yagyu diz-nos que as opiniões de fora “são sempre boas”, que é preciso “fazer uma triagem”, naturalmente, mas “estar metido numa bolha faz com que seja bom receber alguém de ouvidos limpos, que nos diga ‘nesta parte eu fazia uma coisa diferente’, isso faz-nos pensar.”

No campeonato das vozes, foi um pouco diferente. Hélio Morais: “Foi mais complicado porque a voz é indissociável da pessoa que canta, mas por ter sido um trabalho que neste disco fizemos mais, acredito que no próximo aceitemos críticas de forma ainda mais compreensiva. O truque é estarmos rodeados de gente em quem confiamos.” Como tudo na vida, diria um qualquer sábio. Quim Albergaria fala ainda em ego, ou na sua ausência: “Os PAUS ensinaram-nos a diminuir cada vez mais o ego. Estamos sempre a compor os quatro, estamos sempre a compor e a gravar ao mesmo tempo. Se está alguém lá dentro estão depois sempre os outros três a dizer mais para a esquerda ou mais para a direita. A coisa do ‘esta parte é minha’ é uma atitude que dá muito mais trabalho e demora muito mais tempo. Se formos mais flexíveis conseguimos ter melhores resultados porque estamos a trabalhar com gente em quem confiamos.” E para todos os que por esta altura estão a pensar formar uma banda: não precisam de agradecer a dica, aproveitem-na.

O início de um disco dos PAUS faz-se de curtos segundos gravados em soundchecks que depois dão em músicas de corpo inteiro. Makoto Yagyu admite que “a vida mudou desde que temos esta possibilidade de gravar com os telefones, um som que é bom o suficiente para se perceber tudo e depois podemos enviar logo para quem quisermos”. Já o fim é para se ir fazendo, para ir ouvindo entre etapas e para ir arrumando em gavetas, se não está perfeito estivesse. Ou o inevitável “para a próxima fica melhor.” Quando nada mais há a fazer porque os discos estão na fábrica, Hélio Morais sabe bem o que isso é: “Um alívio. Chega uma altura em que não conseguimos ouvir mais aquilo nem falar sobre o assunto. Há ali um detalhe que podia estar melhor? Há. Não interessa.”

Nem um bocadinho. Interessa agora o que aí vem. Concertos, mó people (canção número dois de “Mitra”, só naquela), concertos. Esta sexta no São Jorge, em Lisboa, noite oficial de baile rock para apresentar “Mitra” ao mundo. Depois o resto do país, Holanda e Bélgica. Isto só até ao fim de Março, depois haverá mais, só pode, e a obrigatória festivalada que a rapaziada merece. Ainda sobre este primeiro concerto: haverá after-party no Lux. Porque o circo rock’n’roll merece continuar vivo e porque os PAUS gostam de quem gosta deles. Hélio Morais quer falar com pessoas, querem todos, “fala-se pouco, hoje, ou melhor, fala-se muito mas sozinho”. E esta banda preza quem os quer bem, é uma qualidade e assim sendo é bom que continue.

Quando se metem em encrencas

Quim Albergaria volta ao início desta história para recordar que os PAUS sempre gostaram mais de estar bem acompanhados do que mal sozinhos. Distraíram-se durante algum tempo, porque os caminhos do mundo são assim, mas é tempo de voltar ao assunto: “O nosso primeiro lançamento de todos [do EP “É Uma Água”, em 2010] foi um churrasco na nossa sala de ensaio. Fizemos várias vezes concertos no chão, sem PA, porque era mais fácil e porque ter gente à volta é muito bom. A nossa música tem um lado físico e próximo, se estivermos junto das pessoas será sempre melhor. Várias vezes nos metemos em encrencas porque pedimos a pessoas para subirem para cima de palcos. É-nos natural querer estar mais próximos. Tomámos algumas decisões na altura de ter ideias para promover o disco para isso. E vamos ter mais ideias para diminuir a distância.”

É arrepiar caminho e estar lá para ver, que isso de ouvir em disco é muito bonito mas nunca é a mesma coisa. As bandas têm este encanto, vão atrás da solitária epifania rock’n’roll mas em grupo. Neste bando são quatro e ali no Haus, onde há um entra e sai constante de gente que quer o mesmo, estes são manos, são mesmo, é calão da street mas também é a verdade. Não é preciso instituir regras, elas aparecem no meio de uma coisa bonita chamada bom senso. Evitar o desconforto é a regra número 1, diz Makoto, até porque “quando alguém não está confortável com alguma coisa, esse desconforto espalha-se, é forte, pega-se”. O resto é ser garoto sempre que possível. Hélio Morais explica: “A nossa ideia de banda, talvez porque somos uns tolinhos que vieram do punk hardcore e aí a cena principal era estarmos juntos, continua a ser essa. É preciso é rodeares-te das pessoas certas para te servires daquilo que tu próprio és.” Mais uma pista. Não têm de quê, mitras.

Concerto de apresentação no São Jorge esta sexta-feira, dia 12, às 21h30. Bilhetes entre os 10 e os 12 euros. Primeira parte: Cachupa Psicadélica