Uma gargalhada afetuosa. É assim que “Salve, César”, a nova comédia dos irmãos Joel e Ethan Coen, podia ser resumida na cabeça de um alfineta. E é uma gargalhada afetuosa à custa da Hollywood do início dos anos 50, quando a televisão começava a ameaçar o cinema, a era dos grandes e todo-poderosos estúdios iniciava o seu declínio e estes respondiam à nova ameaça do pequeno ecrã doméstico com espetáculos cada vez maiores e mais caros para tirar as pessoas da frente deste e continuar a levá-las ao cinema.

[Veja um anúncio de televisões dos anos 50]

https://youtu.be/fIfQcY988hw?list=PLtIMy8YKBhx6rjpxk-fcxJAo7ukCchNDo

Num grande estúdio ficcional, o Capitol (o mesmo para que trabalhou Barton Fink no filme homónimo dos Coen de 1991) seguimos Eddie Mannix (Josh Brolin), personagem inspirada numa figura real. O cargo oficial de Mannix é diretor de produção, mas ele é, na verdade, um “fixer”, um homem que tem por funções gerir os caprichos das estrelas, ocultar-lhes os podres, abafar-lhes as escandaleiras, branquear-lhes a reputação, garantir que só notícias inofensivas e histórias cor-de-rosa chegam aos jornais e às colunas de mexericos e que a normal rodagem dos filmes não é afetada por nenhuma dessas coisas. É um trabalho que pode ocupar as 24 horas do dia, que Eddie executa com uma competência a toda a prova e uma fidelidade exemplar ao seu patrão Joe Schenck (que também existiu mas só ouvimos ao telefone), o faz sacrificar horas de lazer junto da família, e cujos detalhes sórdidos nem ao seu confessor revela (Eddie é católico de confissão crónica).

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[Veja o “trailer” de “Salve, César!”]

Eddie tem três coisas a preocupá-lo. A gravidez sem pai certo da vedeta de musicais aquáticos DeeAnna Moran (Scarlett Johansson), uma daquelas belezas graciosas que borra a pintura toda quando abre a boca depois do “Corta!”; a urgência de vender como galã a Laurence Laurentz (Ralph Fiennes), afetado realizador de dramas sofisticados, o simpático mas impagavelmente rústico “cowboy” cantor Hobie Doyle (Alden Ehrenreich); e a resolução do desaparecimento da “estrela” Baird Whitlock (George Clooney) da rodagem de um “peplum” tipo “A Túnica”. Whitlock, másculo como Clark Gable, Victor Mature ou Charlton Heston, e estúpido que nem um curral de jumentos, não se foi meter nos copos nem na cama de uma amante, tendo antes sido raptado por um grupo de argumentistas comunistas frustrados, que querem um resgate em contado. No meio disto tudo, o assoberbado “fixer” tem que evitar que duas colunistas de mexericos gémeas (Tilda Swinton num duplo papel) que se odeiam mutuamente, saibam o que está a acontecer com Whitlock, e ainda ponderar uma lucrativa oferta para mudar de emprego, e de ramo.

[Veja a entrevista com os irmãos Coen]

Em “Salve, César”, os manos Coen patinam sobre o gelo finíssimo do gozo dobrado de homenagem, sem nunca mergulharem na água gelada. O filme é uma minuciosa e desopilante recriação da Hollywood de inícios dos anos 50, dos bastidores da máquina criativa e industrial do cinema americano, um “pastiche” simultaneamente sarcástico e admirativo, uma homenagem dúplice, irónica e afetuosa. E tanto mais eficaz e conseguida quanto se percebe que Joel e Ethan Coen conhecem perfeitamente e estimam enormemente o meio de que estão a falar, sem terem quaisquer ilusões sobre os seus podres, ridículos e torpezas, mas admirando as obras-primas que, apesar disso, lá foram geradas.

[Veja a entrevista com Josh Brolin]

https://youtu.be/ARst7r9BHtc

O filme permite ainda aos Coen rodarem, dentro dele, uma sucessão de mini-filmes típicos da produção da época, a saber: um musical da escola Busby-Berkeley-Esther Williams, um “western” série B, um drama sofisticado “de prestígio” à George Cukor, um épico romano-bíblico beato e um musical ao estilo Gene-Kelly Stanley Donen (que permite a Channing Tatum mostrar os seus dotes de cantor e bailarino) – sem esquecer a paródia ao “thriller” paranóico da era macartista embutida no argumento. Ou seja, temos direito ao deslumbre do espectáculo e à exposição não tão deslumbrante dos seus bastidores, à Hollywood clássica de gala e em cuecas, num dois-em-um cinéfilo-parodiante, com Joel e Ethan Coen a exercitarem os músculos do seu humor enviesado, e a mostrarem mais uma vez o seu gosto pelas personagens levemente grotescas, ridiculamente pândegas ou estúpidas que nem portas corridas.

[Veja a entrevista com George Clooney]

Uma palavra final para o absurdo título português do filme. Toda, mas toda a gente, do vulgo mais indiferente ao Astérix de Uderzo e Goscinny, diz “Avé, César!”. Por que cargas de água foram trocar “Avé” por “Salve”? Para isto, só uma resposta. Avé, irmãos Coen: os que vão morrer a rir a ver “Salve, César!” te saúdam!