Nunca estudou pintura, foi sempre autodidata. “Quem estuda pintura, também aprende a pintar, isto é, a ver as experiências normais e os esquemas que não servem para nada”, afirmou numa entrevista.

Por muitas décadas considerada voz marginal, ostracizada e recolhida sobre si mesma, longe de tendências ou colaborações, a italiana Carol Rama (1918-2015) ganhou visibilidade internacional na década de 90 e agora é redescoberta por uma geração de académicos e apreciadores de arte que seguem as teorias queer, ou seja, a atitude libertária perante os géneros e as sexualidades.

Exemplo disso é a exposição “A Paixão Segundo Carol Rama”, criada pela Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e pelo Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, com curadoria da historiadora Teresa Grandas e do filósofo transgénero Paul B. Preciado.

A exposição tem estado a percorrer várias cidades europeias, desde outubro de 2014, e a 24 de março chegará ao Museu de Arte Moderna da Irlanda, em Dublin.

A obra que o Observador agora destaca é uma das que integram aquela mostra: “Appassionata”, aguarela de 1943 onde três figuras humanas aparentam interagir sexualmente. A multiplicação de pénis, as bocas carnudas e a língua de fora são óbvios sinais dessa carga sexual que foi tema obsessivo da artista ao longo do tempo.

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“Desde as suas primeiras aguarelas dos anos 30, Carol Rama inventa uma gramática visual própria, em constaste com as representações modernas da sexualidade”, escrevem as curadoras daquela exposição. “O corpo feminino, ao mesmo tempo mutilado e ameaçador, violentado e irredutivelmente desejante, apresenta-se ativo e vital.”

Protagonista dos movimentos de vanguarda, Carol Rama começou a pintar muito cedo, numa época dominada pelos homens artistas e pelo fascismo em Itália. A arte foi uma forma de terapia, repetiu em entrevistas: uma reação à família católica tradicional, à doença mental da mãe e ao papel secundário da mulher na sociedade.

Em diálogo artístico com Carlo Mollino, Edoardo Sanguineti, Man Ray, Louise Bourgeois e até mesmo Pasolini e Warhol, Carol Rama tocou o abstracionismo, o surrealismo, o expressionismo. Terá sido pioneira de linguagens agora classificadas como “porno brut” ou “povera queer” – termos autoexplicativos.

Recebeu um Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2003, prémio de carreira num país que décadas antes, em 1945, lhe censurou a primeira exposição, em Turim, cidade natal, sob a acusação de obscenidade.

1. Deitar a língua de fora
Numa criança, a língua de fora é insolência ou provocação. Num adulto, pode ser erotismo. E não só. Carol Rama vai buscar o vermelho carregado do fauvismo e usa-o, aqui como noutras pinturas, em línguas ou vulvas. Ao gosto das interpretações atuais, a cor forte “denota a resistência do corpo às forças que o dominam e às instituições que o subjugam”, escrevem Teresa Grandas e Paul B. Preciado. A curadora Anne Dressen, num programa da rádio France Culture, apontava no mesmo sentido: a língua de fora é “símbolo de provocação e desafio”, evidenciando, ao mesmo tempo, “um corpo exangue, sob pressão do contexto exterior e a sociedade”

2. Órgãos sexuais multiplicados
Tudo nesta composição é ambíguo. Porque é que as duas figuras de segundo plano, que diríamos serem homens, ostentam inúmeros pénis? Uma hipótese rebuscada é defendida pela curadora Anne Dressen, do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris: são um símbolo do movimento futurista, cuja iconografia se baseava na sobreposição e repetição de imagens. Ou talvez representem, recuemos à época, o poder masculino exacerbado e fascizante, que Carol Rama contestou pela arte: cada homem teria sobre uma só mulher o poder de muitos homens.

3. Homens tristes e contentes
A artista foi sempre ambígua na representação da masculinidade. Por um lado, tinha uma atitude que alguns consideram feminista: criticar o papel secundário atribuído às mulheres. Por outro, confrontava os valores masculinos tradicionais e a hipertrofia do homem no período entre guerras. Talvez os rostos destes homens, atestem isso. O da esquerda, aparenta uma atitude sexual, até pela posição ereta dos pénis, enquanto o da direita, embora sorridente, esteja quase tapado pelas flores que saem da cabeça da figura feminina. Note-se, porém, que no dizer de Anne Dressen a artista italiana não procurou uma oposição homem-mulher. “Ela é estilisticamente transgénero ao longo da carreira”, afirma a curadora.

4. O pensamento a florir
A cabeça das personagens presta-se a muitos discursos. Homem sorridente: não tem cabeça. Homem sério: aparenta uma coroa de espinhos. Mulher: coroa de espinhos e floração viva. Para o artista plástico David Douard, as flores deste quadro representam o pensamento da personagem. Como se o pensamento lhe estivesse a subir, a ganhar forma, um pensamento em flor. Mas as formas orgânicas, em Carol Rama, “assumem sempre um papel agressivo e de resistência”, acrescenta David Douard, pelo que a personagem estaria a anular o homem por detrás dela. A mulher que pensa e anula o masculino. Símbolo dessa anulação: os pénis daquele homem não estão eretos.

Título: “Appassionata”
Autor: Carol Rama (1918-2015)
Data: 1943
Técnica: Aguarela e pastel sobre papel
Dimensões (cm): 19,6 x 12,7
Coleção: Arquivo Carol Rama, Turim