O cubismo de Pablo Picasso e Georges Braque causou abalo em Piet Mondrian. O pintor holandês descobriu as vanguardas por volta de 1908. E nada mais foi como dantes.

De início, fazia pintura naturalista, depois observou obras de Picasso e Braque numa exposição de 1911, em Amesterdão, e aprofundou a deriva abstrata que lhe permitiu criar obras como “Tableau”, hoje pertencente à Colecção Berardo.

Vemos nesta pintura um fundo branco, com linhas pretas horizontais e verticais, e três cores primárias: vermelho, amarelo e azul. “É um quadro de interrogação, não é um retrato, não há figuras, há um estudo e uma teoria”, resume o historiador Pedro Lapa, diretor artístico do Museu Berardo.

A composição data de 1923 e integra o neoplasticismo, corrente do abstracionismo de que Mondrian será criador e praticante único. Princípios fundamentais do neoplasticismo: simplificar, depurar e destruir a sobreposição de um elemento em relação a outro.

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Mondrian cria a sua própria realidade e quer que o público o siga. “Quer construir uma pintura que defina as estruturas cognitivas da própria visão”, explica Pedro Lapa. “Já não entende a pintura como mero repositório da experiência empírica.”

O pintor seguia o movimento artístico holandês De Stijl, fundado por Theo van Doesburg. Propunham um “programa radical utópico”, na designação dos especialistas, que rejeitasse os excessos decorativos, criando uma linguagem estética universal.

Note-se que a pintura não recebeu um título genérico, antes uma descrição objetiva do que é: “Tableau” (“quadro”). Mondrian procedia assim desde 1918 e, como ele, muitos pioneiros da arte abstrata do início do século XX. Acreditavam que o público deveria poder explorar a pintura em todas as dimensões que entendesse, sem ser dirigido pelos títulos.

“É uma pintura muito importante, tem uma modernidade impressionante”, discorre Pedro Lapa. “Os elementos mais banais e os objetos que hoje usamos no dia a dia são de certa forma tributários desta síntese que Mondrian conseguiu nas formas e no tratamento da cor.”

1. A simplicidade reage à fotografia
Porque é que o artista pinta de maneira tão simples, com linhas e manchas de cor? Ou ainda: porque é Mondrian pintou “coisas” e não pessoas, figuras, elementos comuns? Porque era um abstracionista, dir-se-á. A resposta parece incompleta. O que temos é também “uma reação à fotografia”, no entender de Pedro Lapa. “Quando o célebre pintor kitsch Paul Delaroche viu um daguerreótipo, na primeira metade do século XIX, terá dito que a partir dali a pintura estava morta”, recorda o historiador. “Quem pintasse de forma estritamente naturalista e tivesse uma noção mimética da pintura, com os dados do mundo e uma representação fidedigna, encontrava na fotografia um desafio inelutável, porque a fotografia conseguia ir muito além.” Ora, Mondrian, que começou como pintor de paisagens, percebeu o desafio que as fotos colocavam à pintura e daí ter seguido um caminho diferente: usou a pintura para questionar a realidade – o que os impressionistas, no século XIX, já tinham iniciado.

2. Preto e amarelo
Eis uma dimensão puramente abstrata da pintura e do raciocínio: o valor da linha e o valor do plano. O quadrado negro, no canto superior esquerdo, é acompanhado por um retângulo amarelo. É preciso fazer zoom in e tomar cuidado com as ilusões de óptica. O amarelo é contornado por duas linhas pretas, em cima e em baixo, mas a linha de cima hesita e não chega ao limite da pintura. Está como que incompleta, como se o retângulo amarelo tivesse caído em cima do quadrado preto. Será? “Esta dialética entre o que se expande para lá dos limites do quadro e o que se concentra dentro dos limites é algo que Mondrian experimenta de forma muito própria”, analisa Pedro Lapa. Fazer-nos pensar sobre as linhas e os planos, parecendo uma tarefa inútil, é uma “preocupação nova” que Mondrian instala.

3. A política das hierarquias
O quadrado azul é mais pequeno que os outros, mas será pouco importante? Com este quadro, o pintor destrói a hierarquia dos elementos e procura a equalização. Nenhuma cor é mais importante que outra, nenhuma linha ou forma geométrica ganha ou perde. “Para Mondrian essa equalização fazia sentido não apenas na própria pintura, era uma forma de dar a ver, através dela, um novo mundo que se procurava construir”, observa Pedro Lapa. Temos, pois, a pintura como utopia e caminho espiritual, cabendo aqui referir que Mondrian não era marxista ou seguidor de uma doutrina social religiosa – tinha optado, sim, pelo misticismo teosófico.

4. Linha vertical masculina, linha horizontal feminina
“A vertical e a horizontal são as dimensões estruturantes do campo da visualidade, submetido a estas coordenadas”, lembra o diretor do Museu Berardo. O pintor usava o termo “relação primordial”. Seguidor da doutrina teosófica, já se disse, busca uma dimensão espiritual e simbólica: a linha vertical representaria o masculino; a horizontal, o feminino. Quanto à cor, opta pelo vermelho, amarelo, azul, branco e preto: três cores e duas não-cores. É a partir delas que se obtêm todas as outras. Neste sentido, “Tableau” surge como um quadro de síntese sobre os rudimentos da natureza ou a essência do mundo.

Título: “Tableau (amarelo, preto, azul, vermelho e cinzento)”
Autor: Piet Modrian (1872-1944)
Data: 1923
Técnica: Óleo sobre tela
Dimensões (cm): 54,5 x 53,5
Coleção: Museu Coleção Berardo (Centro Cultural de Belém, Lisboa)