Não sei quando é que o mundo começou a querer conhecer a opinião dos músicos sobre a sociedade, mas lembro-me que foi um dia triste. Digamos, assim ao calhas, que foi a 4 de março de 1966, ou seja, há precisamente 50 anos. Coincidência? Foi nesse dia que o London Evening Standard publicou uma das declarações mais controversas da história da humanidade, quando John Lennon, com base numa sondagem realizada pela Aximage e em qualquer coisa que tinha fumado no dia anterior, afirmou que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Na verdade, isto era uma honra para o filho de Deus porque, apesar de nunca ter lançado um álbum e sem ter feito qualquer tournée pela América do Norte, conseguia competir em pé de igualdade com os quatro rapazes de Liverpool.

Se hoje a frase simplesmente parece inofensiva, perceber o contexto em que foi preferida retira-lhe a carga sacrílega que ainda lhe dava alguma graça. Após um pico global de beatlemania (distúrbio mental que provocava convulsões e que afetava sobretudo adolescentes em aeroportos) os assessores dos Beatles decidiram que a banda devia conquistar respeitabilidade artística, gesto que muitos, desde então, tentaram imitar: George Michael compôs “Careless Whisper”, Justin Timberlake juntou-se a Timbaland, Tony Carreira gravou com a Orquestra Sinfónica de Londres e os Delfins acabaram. Uma análise, mesmo que superficial, às letras da primeira fase dos Beatles mostra porque é que não gozavam da reputação de intelectuais: “Love, love me do / You know I love you / I’ll always be true / So please, love me do” ou “She says she loves you / And you know that can’t be bad / Yes, she loves you / And you know you should be glad” não eram propriamente avanços na exploração das potencialidades da língua inglesa. Centenas de adolescentes histéricas em gritarias e tremores pentecostais eram um capital considerável, mas havia todo um segmento de mercado insensível a letras que podiam ter sido escritas pelo Noddy.

Na altura, julgou-se que um bom trabalho de comunicação seria suficiente para preparar os fãs para os renovados Beatles. Optou-se pela publicação de quatro entrevistas individuais, realizadas por uma jornalista que já os tinha acompanhado numa tournée. Só a entrevista de John Lennon, pelos motivos conhecidos, é que ficou para a história. Lennon, que viria a compor “Imagine”, esse hino zen muito popular em protestos pacifistas, funerais e sessões de hipnose regressiva, estava especialmente empenhado em destruir a imagem de superficialidade. Para tal, deixou-se fotografar escoltado por livros de Oscar Wilde, Aldous Huxley e Jonathan Swift e, desempenhando vigorosamente o papel de formador de consciências, atacou o Cristianismo. Ao contrário do que se pensa, a frase polémica era mais do que uma blague. Era uma pedra num edifício doutrinário que, por incompetência do empreiteiro, não entrou para a história da Teologia: “O Cristianismo vai acabar. Vai diminuir e extinguir-se. Não preciso sequer de argumentar. Tenho razão e isso vai-se provar. Neste momento somos mais famosos que Jesus. Não sei o que vai acabar primeiro, se é o rock’n’roll ou o Cristianismo. Jesus era porreiro mas os discípulos eram broncos e vulgares. A distorção que eles fizeram para mim não dá.”

[veja uma coleção de imagens da época, sobre as consequências das afirmações de John Lennon]

Com a clarividência de um Zandinga, Lennon deu a conhecer uma até aí uma insuspeitada veia profética, acrescentando uma condenação sumária e pouco original dos seguidores de Jesus, esses malandros que deturparam todos os ensinamentos do Salvador. Que tivessem sido eles os autores das únicas fontes onde se pode encontrar mensagem de Jesus era um pormenor em que Lennon, por motivos alheios à sua perspicácia, não reparou. A frase não gerou uma polémica imediata. Num país decente e civilizado como a Inglaterra, foi recebida com a educação, a bonomia e o fastio mal disfarçado de quem se habituou a não confundir irreverência com falta de maneiras, mesmo apreciando aquela e denotando alguma curiosidade antropológica por esta.

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No entanto, cinco meses depois, a frase foi republicada por uma revista norte-americana e veio tudo abaixo. Digamos que a reação atingiu os 8,1 na escala do Estado Islâmico. Brian Epstein, o manager da banda, explicou diligentemente que as palavras tinham sido retiradas do contexto. O contexto, como vimos, era aquele elaborado pensamento que estava para a teologia como “Love Me Do” estava para qualquer um dos 154 sonetos de Shakespeare. No início da tour pelos EUA, Lennon, embora contrariado, acabou por pedir desculpas. No entanto, em alguns estados do Sul o pedido de desculpas chegou tarde. Algumas rádios proibiram as canções dos Beatles e outras de cariz marcadamente filantrópico acenderam fogueiras e convidaram os jovens a usar os discos da banda como combustível. As autoridades de Memphis tentaram cancelar o concerto agendado para aquela cidade e marcaram uma mega-concentração para provar que Jesus Cristo era mais famoso que os Beatles. O Ku Klux Klan também contribuiu, na medida das suas possibilidades incendiárias, para o clima de intimidação, mas durante toda a digressão não se registou nenhum incidente grave. A partir daí, Lennon, transformado num cruzamento entre um sábio oriental instantâneo e um hippie de mansão, começou a exibir o comportamento tonto e afetado característico dos músicos desesperados por promover a harmonia entre os povos.

Nos anos 90, alguns músicos tentaram recuperar o legado das velhas declarações Lennon. Noel Gallagher disse que os Oasis eram mais famosos que Deus. Marilyn Manson afirmou que os cristãos, tal como tinha acontecido com os dinossauros, estavam à beira da extinção. Tinham aquele sabor requentado das provocações em segunda mão (lembram aquele personagem de Mel Gibson em “Forever Young”: viçosas num minuto, fora do prazo no minuto seguinte). Ninguém lhes ligou nenhuma, que é precisamente o que se deve fazer a uma estrela do rock quando não está a atuar.

[leia aqui a entrevista de Maureen Cleave a John Lennon, publicada no London Evening Standard a 4 de Março de 1966]

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015