Título: O Amigo Comum
Autor: Charles Dickens
Editor: Relógio d’Água
Páginas: 752
Preço: 25,00€

amigo comum

Já todos ouvimos a expressão “eu tenho um amigo meu” ser utilizada para iniciar a narração de uma história insólita ou de um episódio banal. Existe quem defenda que perante tal ocorrência se deve responder imediatamente, interrompendo a narrativa, “curioso, eu também tenho um amigo meu”, alertando assim, graciosa e corrosivamente, para a redundância de afirmar que os nossos amigos são nossos amigos. Recentemente, a Relógio d’Água publicou um livro que nos recorda esta maneira peculiar de começar histórias: o penúltimo romance de Charles Dickens, Our Mutual Friend (publicado originalmente em folhetim entre 1864 e 1865), agora pela primeira vez integralmente traduzido para português com o título O Amigo Comum.

O escritor inglês G.K. Chesterton, referindo-se ao título do romance, afirmou que este era “iletrado”, que “nenhum académico o teria escrito” e que alguém medianamente educado poderia ter dito a Dickens, um autodidacta, que “o nosso amigo mútuo” significa “o nosso amigo recíproco” e que “o nosso amigo recíproco” não significa nada. Acrescentou Chesterton que qualquer pessoa poderia ter avisado Dickens de que a expressão mais correcta em inglês seria “our common friend”. A ideia de Chesterton parece validar a opção da editora pelo título O Amigo Comum, opção essa que parece querer fugir do “vulgarismo” (o termo é de Chesterton) existente em expressões como “eu tenho um amigo meu”. Esta opção, no entanto, não parece ser a mais adequada por dois motivos: em primeiro lugar porque o título é uma citação de uma expressão proferida duas vezes por uma personagem iletrada, Boffin (que, não por acaso, numa dessas conversas em que diz “our mutual friend” confessa que não percebera porque determinado homem desejava ser seu “secretary”, pois julgava que isso era uma peça de mobiliário) (p. 168), e, em segundo lugar, porque extingue a ironia existente no facto de Dickens escolher um pleonasmo a propósito do conceito de posse para intitular um romance cuja trama se desenvolve à volta de uma herança desejada por muitos e em cujo texto se ridicularizam constantemente as ambições materialistas desmesuradas da sociedade vitoriana. Todavia, se a escolha do título parece ter descurado a ironia que o justifica, o mesmo não se pode dizer do trabalho notável feito pela tradutora Maria de Lourdes Guimarães, pois um dos seus grandes méritos passa precisamente por não deixar que a ironia que celebrizou Dickens se perca na tradução, desde logo porque, devido a uma escolha criteriosa do vocabulário, consegue manter imaculadas algumas das ambiguidades mais originais do texto.

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A classe de Dickens

Exemplo maior da virtude da tradução é o capítulo intitulado “Uma Empreitada”. Neste capítulo, Veneering, um arrivista com uma “casa novinha em folha num bairro de Londres novinho em folha” (p. 15) recheada com amigos e móveis, todos novinhos em folha, é convidado para entrar na vida política. Sem ponderar, Veneering decide candidatar-se ao cargo e partir numa demanda vertiginosa em busca de apoio. De modo a ilustrar a leviandade das decisões políticas, Dickens representa as vitórias e os percalços desta “epopeia” a uma velocidade alucinante. O autor fá-lo através de certas subtilezas retóricas, como se vê, por exemplo, no momento em que Veneering encontra o amigo Twemlow com um novo penteado. Em vez de se demorar numa descrição pormenorizada de Twemlow, o narrador apressado compara-o “ao monumento que está em Fish Street Hill e ao rei Príamo, num certo incêndio, não totalmente desconhecido porque é um assunto tratado pelos clássicos” (p. 226).

Ao remeter o leitor para o monumento do Grande Incêndio de Londres e para a figura do rei de Tróia quando vê a sua cidade em chamas, Dickens não está apenas a aproximar o aspecto do cabelo de Twemlow do aspecto de labaredas, mas a dizer que quando estamos apressados, sobretudo quando narramos algo, recorremos àquilo que já está pronto, isto é, a algo que nos permite simplificar a descrição com uma comparação, mesmo que essa comparação já esteja gasta, como no caso dos cabelos do rei Príamo, por ser usada desde o século VIII A.C, sendo, por isso, um cliché. Esta ideia reaparece quando Veneering faz o seu primeiro discurso começando por estabelecer “uma original comparação entre o país e um barco, chamando ao barco o Navio do Estado” (p.233). Sabendo que a metáfora da “Nau do Estado” era já em Platão um cliché, Dickens, de forma irónica, faz com que o discurso político de Veneering se assemelhe ao discurso do narrador e à acção das personagens neste capítulo, que é, no fundo, uma sátira à vida política onde “quer se trate de fazer entrar ou sair ou empurrar alguém, de promover ou de opor-se a um caminho-de-ferro, seja o que for, nada é tão vantajoso como mexer-se a toda a velocidade” (p. 231), não havendo tempo sequer para Veneering ouvir as ideias que levaram o pensador Podsnap à “espantosa descoberta de que a Itália não é a Inglaterra” (p. 228). Ao manter uma sintaxe muito próxima da original, a tradução consegue proporcionar o ritmo acelerado do capítulo sem, no entanto, descurar alguns dos pormenores mais deliciosos.

black, &, white;format, portrait, ;male;facial, hair;Roles, &, Occupations;Personality;British;English;P, 1983, BOX, 301, 1/2;P/DICKENS/CHARLES,

Charles Dickens nasceu em 1812 e morreu em 1870

Abundantemente elogiados pela crítica, sobretudo por corresponderem àquele tipo de sketches de sátira social que construíram a merecida reputação de Dickens como um dos melhores retratistas da sociedade britânica do século XIX, os capítulos protagonizados pelos Veneerings não constituem, porém, o cerne da trama de O Amigo Comum, uma vez que esse lugar cabe à história das peripécias que são desencadeadas pela morte do velho Harmon, ou melhor, pelas peripécias resultantes do cumprimento do seu testamento e por aquilo que a sua herança é capaz de alterar na vida de uma quantidade significativa de personagens.

O enredo tem início no rio Tamisa (que no romance funciona como metáfora fértil para um considerável número de associações a tópicos recorrentes da literatura), onde um barqueiro e a sua filha trazem num barco um cadáver que retiraram do rio e que, supostamente, é o corpo de John Harmon, um jovem regressado a Londres para se apresentar como herdeiro legítimo da fortuna do seu pai. Perante o falecimento do legítimo herdeiro, a fortuna passa, por vontade expressa do seu antigo detentor, para as mãos dos seus antigos criados, o casal Boffin, que, devido à sua honestidade, apenas esperava receber um dos três montes de lixo e cinza que o velho Harmon deixara. Não tarda, porém, que o casal diga: “Ficámos muito ricos e temos de fazer o que está certo; temos de ter uma vida de acordo com a fortuna” (p.97). Mas não demora a que o ex-lixeiro Boffin, comece a colher os frutos envenenados da sua nova posição financeira e social e, a certa altura do romance, chega mesmo a admitir que paga “uma espécie de imposto sucessório perpétuo” ao alimentar uma certa quantidade de parasitas, apresentando Dickens a taxonomia desta espécie de forma detalhada e irónica, desde as “corporações de pedintes” até ao “pedinte com hábitos de pontualidade”, passando pelo “pedinte de nobre independência” (p.197).

Desta forma, é legítimo considerar que, em grande medida, O Amigo Comum é um comentário incisivo sobre uma sociedade dominada pelo dinheiro, onde o único evangelho capaz de converter é o evangelho do ouro. Na verdade, Dickens não cessa de sublinhar que tudo parece estar à venda. Na loja de Venus, o eufemisticamente auto-intitulado “articulador de ossos humanos”, encontram-se, entre outras aberrações, “um bebé indiano conservado; outro africano, (…) um esqueleto de um bebé inglês, cães, patos, diversos olhos de vidro, uma ave mumificada” (p.80-81); na moradia do Reverendo Milvey existe um verdadeiro mercado de órfãos onde, por excesso, “a rapidez de cotação de um órfão no mercado não se podia comparar com as mais loucas transacções da bolsa” (p.182). Não espanta, então, que as questões a propósito da biografia dos homens desta sociedade tenham todas a mesma resposta: “De onde vem ele? Acções. Para onde vai? Acções. De que gosta? Acções. Tem princípios? Acções. O que o levou a ir para o Parlamento? Acções.” (p. 110), e que Dickens se refira à Bolsa como “a Igreja dos Dividendos” (p. 564).

Uma questão de contas

Pese embora o dinheiro ser o dinamizador da acção, não se pense que Dickens escreveu mais um romance-tese em que este é sempre somente o vil metal, porque se, de facto, é o dinheiro que faz mudar as personagens, nem sempre as faz mudar para pior, como é o caso de uma das personagens mais interessantes do romance: Bella Wilfer. Para que John Harmon pudesse herdar a fortuna do seu pai, este impunha-lhe como condição casar com uma desconhecida, a jovem Bella. Ora, com a suposta morte do herdeiro, Bella vê a fortuna escapar-se-lhe das mãos. Isto não seria profundamente grave se esta jovem não fosse “fútil, fria, mundana e preconceituosa” (p. 481) e “a interesseira mais miserável deste mundo” (p. 294). Há, todavia, dois aspectos curiosos nestas descrições: o primeiro é que estas são feitas pela própria Bella e o segundo é que não correspondem à verdade. De facto, ao longo da narrativa, esta personagem esforça-se desmesuradamente para que todos, sobretudo ela própria, acreditem que é um ser abjecto, que se venderia facilmente e que odeia que lhe venham falar de sentimentos nobres, especialmente de amor. Bella acaba por encontrar a prosperidade quando é adoptada pelos novos-ricos Boffin, mas acaba por rejeitá-la quando percebe, simultaneamente, que o dinheiro terá tornado o generoso Boffin no maior avarento da história de Inglaterra e que está apaixonada pelo secretário Rokesmith, um homem aparentemente sem fortuna. Nesse momento, a jovem acaba por aceitar que é uma mulher muito diferente da interesseira mesquinha que se esforça por ser, não obstante o facto de ainda se continuar a descrever de forma pejorativa no final do romance, apresentando assim um carácter contraditório intrigante.

Na verdade, somando esta permanente tensão no carácter de Bella com a estranha paixão, em dados momentos quase incestuosa, que esta tem pelo pai, torna-se difícil dar razão a Fernando Pessoa quando este afirma, num texto sobre Dickens, que nos romances deste autor só as personagens masculinas se destacam e que as personagens femininas são meros ornamentos das masculinas. Isto porque se a descrição de Pessoa parece acertada a propósito de Lizzie, o mesmo não pode ser dito da desfigurada criança Jenny Wrenn, uma modista de bonecas pobre e marreca, que, no momento em que cria a sua arte, ao “obrigar” as aristocratas da sociedade londrina a posarem como modelos para as suas bonecas, inverte toda a escala social, o que pode ser lido como uma apologia da arte, perante a qual toda a realidade se curva e se torna, assim, marreca. O mesmo poderia ser dito a respeito da personagem Betty Hidgen, uma idosa que prefere manter a sua independência, mesmo que isso signifique ter de deambular em sofrimento, do que ir para o asilo e ficar presa aos protocolos das Poor Law, sistema de ajuda social então vigente e que Dickens critica explicitamente, chegando mesmo a apostrofar, num tom pouco amigável, aqueles que o põem em prática e que transformam a caridade numa “espécie de Fúria vingadora” (p. 462). A crítica de Dickens às políticas do seu tempo não estanca aqui, uma vez que várias são as ocasiões em que o sistema educacional é dissecado ao pormenor, sendo a escola classificada simultaneamente como “um templo cheio de boas intenções” e um “viveiro de crianças [que] trocavam entre si o sarampo, as erupções de pele, a tosse convulsa, a febre e os distúrbios de estômago” (p. 200).

Convém realçar também que apesar de O Amigo Comum não ser de todo um romance daqueles aos quais geralmente se coloca a etiqueta “naturalista”, estando sempre muito mais próximo dos romances de Balzac do que dos de Zola, apresenta certas descrições, nomeadamente dos bairros pobres de Londres, que não só ombreiam como ultrapassam em génio as melhores descrições da arte dita naturalista, como, por exemplo, na descrição da incapacidade de as mulheres desses bairros manterem um penteado então em voga devido às constantes agitações da vida dura desses bairros e serem, assim, obrigadas a trazer sempre “os pentes na boca” (p. 323), tentando remediar o que não tem remédio. Contrariamente, a tendência determinista de boa parte da literatura naturalista é completamente rejeitada na narrativa de O Amigo Comum e até de modo enfático na evolução de personagens como Bradley Headstone e Eugene Wrayburn, em especial na deliberada falta de harmonia do chiaroscuro formado por este par. Se, por um lado, Headstone, um mestre-escola respeitável, digno de ser elogiado por ter prosperado graças exclusivamente ao seu esforço, acaba por se transformar, por amor, num ser desprezível; por outro lado, Wrayburn, um dandy impassível que, tal como “dez mil outros jovens, dentro dos limites da distribuição dos Correios de Londres” (p. 27), diz abominar a apologia da energia visto não haver nada que mereça o seu dispêndio, acaba por se tornar bastante enérgico e admirável na sua tentativa de conquistar a pessoa que ama.

Detalhes

Existe ainda outra virtude no romance de Dickens que tem de ser elogiada: a maneira delicada com que o autor enche o texto de pormenores que visam criar uma distância entre o narrador e o autor e, consequentemente, tornar o texto mais verosímil na medida em que cria a ilusão de que aquilo que está a ser narrado é independente da intenção do autor. Veja-se, como exemplo, o momento em que o narrador diz não saber o apelido de um certo indivíduo chamado Jonathan (p. 406) ou o episódio em que Rokesmith se encontra com Bella nos campos e onde se lê que “se resolveu atravessar os campos com a intenção de aí encontrar a menina Bella Wilfer, não se sabe, mas ela geralmente costumava passar por ali àquela hora. E, aliás, ali estava ela” (p. 191).

O Amigo Comum é, assim, indubitavelmente, um grande fresco onde cabe toda a sociedade vitoriana, simultaneamente fascinante quando é visto a uma distância considerável e quando nos fixamos nos detalhes. Fazê-lo está ao alcance de poucos, desfrutar do facto de Dickens ter sido capaz de o fazer está agora ao alcance de mais uns quantos, graças a esta tradução excelente agora publicada.

Jorge Almeida é aluno de doutoramento em Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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