Há uma guerra de titãs em curso no cinema americano, travada por interpostas personagens entre as editoras Marvel e DC e os grandes estúdios Disney e Warner Bros, a que aquelas pertencem e estão associadas, respectivamente. O descomunal “Batman vs Super-Homem: O Despertar da Justiça”, de Zack Snyder, assinala o contra-ataque da DC e da Warner, e a abertura de uma nova frente, já que anuncia uma nova rajada de filmes de super-heróis, os da série “Justice League” e mais um Batman com Ben Affleck, o novo habitante do exosqueleto do Homem-Morcego. O universo DC conta espingardas para responder ao universo Marvel, e além de juntar aqui Batman e Super-Homem, os seus cabeças de cartaz, reforça-se com a Mulher-Maravilha e Aquaman.

[Veja o “trailer” de “Batman vs Super-Homem: O Despertar da Justiça”]

Como já notaram alguns críticos de cinema e analistas da indústria cinematográfica dos EUA, estas fitas de super-heróis, que exigem orçamentos cada vez maiores e meios técnicos crescentemente sofisticados, estão a minar Hollywood por dentro. São como gigantescos eucaliptos secando e sugando tudo em redor, comprometendo a produção tradicional dos estúdios – o chamado filme de “orçamento médio” está quase reduzido à expressão mínima — e inflacionando a economia do ramo. “Batman vs Super-Homem” custou 250 milhões de dólares, fora o orçamento de promoção, que deverá ter andado pelos 150 milhões, o que dá um total de 400 milhões. O filme precisa de fazer pelo menos o dobro dessa soma na bilheteira antes de começar a dar lucro, e já há na indústria quem avise que esta espiral megalómana poderá não durar muito tempo. E que quando uma ou duas destas bisarmas soçobrar nas bilheteiras, o tecto vai cair e Hollywood viverá o seu momento “Queda de Wall Street”.

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[Veja a entrevista com o realizador Zack Snyder]

Este filme de Zack Snyder padece dos mesmos males de praticamente todos os do género. É macrocéfalo no orçamento, na tecnologia, no aparato de efeitos digitais, na concepção das personagens, e microcéfalo em tudo o resto, da originalidade da história à capacidade narrativa, passando pela simples satisfação emocional do espectador. Quanto mais estas produções apostam no gigantismo visual, na desmesura formal, na inflação de efeitos especiais, na sobrecarga da banda sonora e nas sequências de destruição maciça (há sempre uma cidade, uma civilização, um planeta a ser arrasado, é a pornografia da demolição) mais entediantes, entorpecentes e repetitivos se tornam. E além disso, não sabem quando acabar.

[Veja a entrevista com Ben Affleck]

“Batman vs Super-Homem” arrasta-se por duas horas e meia e tenta meter o Rossio na Rua da Betesga. Durante os primeiros desconjuntados 45 minutos, estamos no escuro. A confusão narrativa é tal que não percebemos nada do que se passa (parece que só os iniciados nos arcanos dos “comics” de super-heróis serão capazes de decifrar o que está a acontecer). Depois, tudo se torna monotonamente familiar. O vilão de serviço, o filho de Lex Luthor, um Mark Zuckerberg maléfico, atira Batman contra Super-Homem para que se eliminem um ao outro, há um monstro disforme (um pouco à imagem do argumento do filme…) e um confronto destruidor entre representantes do Bem e do Mal que atenta contra a estabilidade óptica e auditiva do espectador. Pelo meio, passam inverosimilhanças que até um ceguinho detectava. Os super-poderes de Super-Homem tanto funcionam como não, é como convém à história, e Batman tem um laboratório super “high tech” que parece ter sido todo construído por ele, com o mordomo Alfred a garantir manutenção e assistência técnica. Mais uma vez, o 3D serve apenas para bombardear a plateia com coisas, e o papel do realizador esbate-se, tornando-se cada vez mais num mero coordenador de enormes equipas de efeitos especiais.

[Veja a entrevista com Henry Cavill]

O tempo em que personagens como Batman e Super-Homem eram personagens lineares, representando comportamentos e valores positivos, e que viviam aventuras empolgantes e derrotavam os representantes do crime e do mal, sendo aplaudidos e admirados pelos cidadãos, acabou. De há alguns anos para cá convencionou-se que os super-heróis têm que ser afligidos pelas mesmas dúvidas, dilemas e angústias das pessoas vulgares, que a sua identidade heróica tem que ser posta em causa, que o seu papel e lugar na sociedade tem que ser “questionado” e mergulhado em banho de “ambiguidade” (em “Batman vs Super-Homem”, o Homem de Aço chega a ser convocado para uma audiência no Senado dos EUA para se discutir o perigo que poderá representar para a humanidade). Em suma, têm que ser “dark”, como reza o cliché, sisudíssimos e sem pinga de humor, a exemplo dos filmes onde pontificam.

[Veja a entrevista com Gal Gadot]

Neste aspecto, “Batman vs Super-Homem” usa e abusa da mortificação masoquista, da auto-depreciação amargurada e pessimista e da solenidade bacoca, armando descaradamente ao pingarelho de discurso pseudo-nietzscheano, sobretudo através da voz “off” do Batman de Affleck, pondo-se em bicos de pés para obter uma qualquer caução “intelectual”. O filme de super-heróis quer ser levado a sério. Não trata apenas de sujeitos e sujeitas hipermusculados, com poderes excepcionais e uniformes estranhos, à pancada uns com os outros ou com monstros e alienígenas, também pode dizer coisas “importantes” e “profundas” sobre o Bem e o Mal, o sentido da existência e a natureza humana. Será que proximamente iremos ver os membros da Liga da Justiça ou os Vingadores a debater Kierkegaard e Bergson nos intervalos de salvarem o planeta Terra?

[Veja os uniformes das personagens]

No capítulo das interpretações, a coisa é aflitiva. Ben Affleck, mesmo revestido até ao queixo da super-armadura de Batman, consegue ser mau actor e cabotinar dolorosamente. O Homem de Aço do chóninhas e repetente Henry Cavill faz-nos chorar pelo Super-Homem do saudoso Christopher Reeve. Gal Gadot, vá lá, faz uma Mulher Maravilha muito apresentável e danadinha para a luta. Amy Adams é desperdiçada em Lois Lane, Jeremy Irons compõe um Alfred sarcástico, Jesse Eisenberg interpreta o vilão chalupas com meia dúzia de tiques e tiradas espertalhufo-culturalóides, e Holly Hunter, numa pantomina de Hillary Clinton, mal tem tempo de antena.

[Veja os bastidores da rodagem]

https://youtu.be/pb7itW3lmgU

Entre as personalidades públicas que surgem no filme a fazer delas próprias está o respeitável Neil deGrasse Tyson, que não deve ter percebido bem onde é que se ia meter. No final das tonitruantes, massacrantes, pretensiosas duas horas e meia que mais parecem o dobro de “Batman vs Super-Homem: O Despertar da Justiça”, quem fica a perder no confronto entre o Homem Morcego e o Homem de Aço é o cinema e o espectador minimamente exigente.