A Academia Nacional do Desenho, de Nova Iorque, aceitou-a como sócia honorária em 1850, mas nunca lhe permitiu tornar-se membro pleno. De resto, os críticos de arte referiam Lilly Martin Spencer (1822-1902) como “mulher artista”, querendo com isso assinalar que o mundo da pintura pertencia aos homens e ela estaria a mais (hoje, paradoxalmente, na era da afirmação das identidades individuais, a classificação bem poderia ser reclamada pela própria).
Numa época em que as mulheres nem podiam votar – o feminismo das sufragistas era ainda uma miragem – Lilly Martin Spencer, filha de franceses, nascida em Inglaterra e imigrada nos EUA, esteve à margem do sistema das artes, aparentemente apenas por ser mulher. Mas não só não passou incógnita como viveu casada em termos pouco comuns para a época sem que isso a tornasse menos popular.
O trabalho dela irá refletir preocupações com o lugar das mulheres e dos homens na sociedade e na vida quotidiana, sendo disso exemplo The Young Husband: First Marketing (“O Jovem Marido: Primeiras Compras), pintura de 1854 que hoje pertence à coleção do Metropolitan Museum de Nova Iorque (Met).
The Young Husband… faz par com The Young Wife: First Stew, que se encontra em coleção privada, ambas servindo de comentário irónico e jocoso à vida dos jovens casais.
No dizer de Terrence H. Witkowski, professor na Universidade Estadual da Califórnia, Lilly Martin Spencer foi “uma das mais conhecidas artistas do seu tempo”, mas caiu no esquecimento, até ser redescoberta em meados da década de 1970, quando o feminismo começou a influenciar o discurso histórico.
Sem estudos formais de pintura, terá criado uma linguagem própria, mostrando a vida doméstica como observadora participante. Deram-lhe fama os retratos e as cenas da vida familiar, para o que o marido, os filhos e ela própria serviam de modelos.
“Executadas com detalhe realista e muitas vezes portadoras de episódios cómicos ou mensagens moralizantes, as suas pinturas chamaram a atenção dos americanos que tinham dinheiro para comparar arte e gostavam de cenas suaves e familiares”, lê-se no site do Smithsonian American Art Museum.
Lilly Martin Spencer casou-se em 1844, aos 22 anos, com Benjamim Rush Spencer. Criaram um autêntico “negócio de pintura”, descreve uma nota biográfica assinada pela historiadora de arte Elizabeth Chew. Ele trabalhava como alfaiate, mas uma doença fê-lo desistir da profissão e tornar-se assistente da mulher, na vida profissional e familiar.
“Para o público atual, ela tornou-se um símbolo feminista, pois além de sustentar a família deu à luz 13 filhos, sete dos quais sobreviveram”, sublinha Terrence H. Witkowski.
1. Noivo em primeiro plano
É ele o centro da cena e não apenas da tela. Torna pública uma cena doméstica. Homem dos seus 30 anos, recém-casado, como nos diz o título da pintura, carrega no braço direito um cesto cheio de legumes, fruta, ovos e carne, mas a óbvia inépcia obriga-o a parar e a agarrar o cesto com a outra mão. Apesar da chuva, leva o guarda-chuva fechado, outro sinal de que não tem mãos a medir para a tarefa. Alguns autores têm notado que não seria comum, em fins do século XIX, nos EUA, que os homens fizessem compras domésticas. Poemas e pinturas dessa época documentam que os homens se dedicavam maioritariamente a não fazer nada, à pesca e à agricultura ou à vida política, nota um artigo do jornal americano The Christian Science Monitor. Ainda assim, partindo do princípio de que a cena remete para Cincinnati, no estado do Ohio, onde Lilly Martin Spencer viveu com o marido, o mesmo artigo recorda que um escritor britânico, ao descrever a vida doméstica naquela cidade anotou ser hábito ver homens às compras, com cestos carregados.
2. Compras desfazem-se no chão
Há ovos e vegetais pelo chão e um dos frangos desprende-se do cesto, obrigando o jovem esposo a malabarismos. É por isso que na descrição da pintura fornecida pelo Met se lê que a artista “retratou de forma crua as relações homem-mulher e as agruras dos primeiros anos de um casal”. A mulher é uma figura presente, simbolizada pelo cesto de compras, que por sua vez remete para a vida doméstica, à época dominada por elas. “Spencer retrata com humor uma ansiedade social muito presente naquele tempo: estabelecer um lar e governá-lo com eficiência”, contextualiza o Met. Terrence H. Witkowski acrescenta: a pintura de Lilly Martin Spencer pode parecer-nos risível e socialmente conservadora, mas teve, em meados do século XIX, o papel de “subverter a autoridade tradicional do homem”.
3. O riso público
Claramente mais velho, o homem da cartola surge por detrás do jovem marido, exibindo um riso trocista, o que simboliza uma crítica, provavelmente pretendida pela autora, à inépcia masculina em tarefas ligadas à casa. Segundo Terrence H. Witkowski, quando esta pintura foi exibida na Academia Nacional do Desenho, em Nova Iorque, ninguém a quis comprar, o que demonstrará o sentido político da composição. Note-se que ao fundo, à esquerda, passa uma mulher, sorridente perante a cena, como que para vincar a humilhação pública da personagem em primeiro plano.
4. Um homem abatido
Contrariamente às duas personagens secundárias, o homem da direita, ao fundo, não só não se ri como nem observa o jovem esposo, o que pode ser interpretado como um comentário da pintora às dificuldades de vida dos mais humildes. O marido, bem aprumado, demonstra uma vida burguesa, com posses para encher o cabaz, enquanto o homem ao fundo, de chapéu amarrotado e cesto vazio, abatido pela chuva ou talvez por um dia de trabalho duro, não chega sequer a interessar-se pela cena. É como se nem a visse.
Título: “Young Husband: First Marketing”
Autor: Lilly Martin Spencer (1822–1902)
Data: 1854
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões (cm): 74.9 x 62.9
Coleção: The Metropolitan Museum, Nova Iorque