“Pode ser um momento histórico”, comenta, à entrada, a escritora Lídia Jorge, convencida de que vai ouvir uma “lição para o futuro”. “São quatro sábios com uma longa vida de observação”, diz a autora de A Costa dos Murmúrios. “Eles mantêm uma lucidez extraordinária e vão interpretar esta questão do ponto de vista afetivo, apoiados num substrato cultural extraordinário.”
Ultramar, colonialismo e pós-colonialismo, e a maneira como tudo isso se refletiu na política e na arte – eis o tema da conferência, quarta à tarde, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa.
“Francamente, não sei o que se vai passar”, confessa, à porta, José-Augusto França, que atualmente vive em França e se encontra em Lisboa de passagem. Está prestes a reencontrar o amigo Hélder Macedo, assim como Adriano Moreira, com quem manteve contacto próximo quando este presidiu à Academia das Ciências de Lisboa, entre 2008 e 2010.
E será que também ele, José-Augusto França, vê este debate como histórico? “Não sei, é melhor esperarmos pelo fim.”
Eduardo Lourenço, sabe-se à última, não pode comparecer. Mas, por fim, sempre aparece, quarenta minutos depois do início da sessão, por causa de um mal-entendido com as horas. Entra devagarinho, recebe palmas e provoca a ironia de Adriano Moreira, que já antes se tinha referido à idade avançada dos oradores: “Isto não é uma reunião do Conselho de Estado.”
Adriano Moreira tem 93 anos. A mesma idade de José-Augusto França. Eduardo Lourenço está com 92. Hélder Macedo tem 80.
Ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, quando rebentou a Guerra Colonial, Adriano Moreira fala em “império euromundista” para descrever os Descobrimentos e a criação de colónias. É um conceito que tem utilizado em diversas ocasiões. Nota que a escravatura não desapareceu com as descolonizações e defende que a crise dos refugiados que a Europa enfrenta, assim como os problemas económicos e financeiros, têm raiz no colonialismo.
“Não há organização política conhecida que não invoque uma série de valores a que vai obedecer e que, no seu exercício, não se esqueça dos valores, porque são interesses o que vai executar”, disserta, de improviso. “Nenhum país organizou a sua expansão colonial sem invocar grandes princípios. A nossa e a espanhola invocaram sempre a evangelização. Os franceses, mais refinados, decidiram que iam levar as Luzes.”
O resultado foi a criação, nos territórios colonizados, de “estados extrativos”, nos quais vingou a “arbitrariedade e a exploração de riquezas”, o que leva Adriano Moreira a dizer que o “império euromundista constituía uma unidade” em termos simbólicos.
“O desfazer desse património vai ser sofrido pela geração que ainda está viva. Quando a hegemonia desapareceu, a Europa não perdeu só o domínio político, perdeu o domínio das matérias-primas, dos mercados dos produtos acabados e perdeu o poder terrível de ser ela que estabelecia o preço do trabalho”, explica.
As descolonizações, incluindo a portuguesa, acabaram por instalar a “desordem mundial em que ainda estamos”, o que tem reflexos “no conflito das migrações e na falta de respeito pelas convenções que estabelecem os direitos humanitários”, conclui.
À intervenção política de Adriano Moreira segue-se a intervenção estética de Hélder Macedo. Estão cerca de 200 pessoas a assistir, muitas de meia-idade, e alguns estudantes. Riem-se do bom humor de Moreira – “quando eu era estudante a economia chamava-se economia política e a gente via logo que não era uma coisa exata”. Macedo traz um registo lírico.
“A minha certidão de nascimento foi emitida pelo registo civil da então capital colonial Lourenço Marques, sou filho e neto de funcionários administrativos de Moçambique, disse as minhas primeiras palavras na Zambézia, aprendi as primeiras letras no sul do Save, iniciei o liceu em Lourenço Marques, foi lá que escrevi os meus primeiros versos, dei pontapés na bola com o Mário Coluna e o Costa Pereira, vivi em Moçambique toda a minha infância e parte da minha adolescência”, descreve.
“Foi um tempo mágico, como só a infância pode ser, porque a infância é um espaço sem culpa”, diz Hélder Macedo, que está a ler um texto preparado, logo concluindo: “Não me sinto minimamente culpado pelo que houve de culpável, e muito houve, no colonialismo português, de que sou originário e que é parte integrante da minha identidade portuguesa.”
Ficcionista e poeta, professor da cátedra Camões na King’s College, em Londres, classifica o romance Partes de África, que publicou em 1991, como “um dos primeiros romances portugueses escritos de uma perspetiva pós-colonialista”.
De forma resumida, deixa um levantamento: Lídia Jorge e João de Melo são escritores da “ressaca da guerra colonial”, Vasco Luís Curado e Dulce Maria Cardoso apresentam uma “inovadora perspetiva pós-colonial”.
Eduardo Lourenço é o terceiro a entrar em cena. Lança uma figura de estilo a abrir a intervenção: “Não sei exatamente o que estou aqui a fazer.” Só conheceu África depois de 1974, mas o pai, militar em Nampula por seis anos, transmitiu-lhe “reflexões muito positivas” sobre os africanos, por contraste com um tio “colonialista”, que era, “sozinho, mais racista que África inteira.”
Após longa dissertação, o filósofo acaba por concluir: “A Europa é o ex-centro do mundo”, vivemos já o “crepúsculo do Ocidente”
À medida que a tarde avança, talvez pelo ritmo lento dos oradores, algumas pessoas vão saindo. O microfone de José-Augusto França fica sem som, mas este não se apercebe, até que alguém o substitui. Em leitura quase encenada, no habitual registo de dizer tudo numa só frase, lê o texto que preparou, procurando responder à velha pergunta “colonizámos mal, descolonizámos pior?”, de resto presente ao longo de todas as intervenções.
Claro que José-Augusto França, doutor em História pela Universidade de Paris, não vai dar uma resposta definitiva. Ao apresentar uma lista não exaustiva de artistas do século XX que se inspiraram no colonialismo para o exaltarem ou criticarem, do realizador Lopes Ribeiro ao artista plástico Malangatana, torna-se evidente que se inclina para o “não”.
Segue-se um período de debate, já o encontro vai com mais de três horas, sem que o público, mais reduzido nesta fase, dê grandes sinais de fadiga. Adriano Moreira, o mais enérgico dos quatro, diz já não ter idade para ser professor. “Agora aprendo com os mais novos”.
A conferência foi organizada pela investigadora Maria João Castro, do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, da FCSH. É a primeira de um ciclo de encontros bienais sobre temas da sociedade contemporânea. Na mesa, além dos convidados, estiveram a organizadora e ainda João Paulo Oliveira e Costa, professor catedrático de História na FCSH, e Nuno Severiano Teixeira, vice-reitor da universidade.
“A herança colonial portuguesa encontra-se longe de ser um assunto esgotado”, comenta Maria João Castro, depois da conferência, classificando-a como uma “sessão plena de afetos”.