Ricardo Salgado assumiu perante o Tribunal Central de Instrução Criminal que foi ele quem ordenou as duas transferências de 18,5 milhões de euros para Zeinal Bava realizadas em 2010 e em 2011 a partir de uma conta da Espírito Santo (ES) Enterprises — a empresa sem atividade e sem receitas próprias que é classificada pelas autoridades como o ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo.

As explicações de Salgado são datadas de 24 de julho de 2015 e são contraditórias com as explicações que Zeinal Bava deu a 20 de maio último (quase um ano depois), quando o Observador noticiou os pormenores das duas transferências do ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo (GES) para o ex-CEO da Portugal Telecom (PT). Ao contrário de Bava, Salgado nunca fala em nenhum financiamento do GES para a compra de ações da própria PT e diz mesmo que a ideia para estas transferências partiu de Zeinal Bava.

Depois da detenção para interrogatório no caso Monte Branco em julho de 2014, era a segunda vez que Ricardo Salgado era ouvido pela Justiça para ser constituído arguido no âmbito do caso BES — tendo ficado em prisão domiciliária por suspeitas dos crimes de burla qualificada, falsificação de documento e informática, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.

Foi neste interrogatório que Ricardo Salgado foi confrontado pelo juiz Carlos Alexandre e pelo procurador José Ranito com as transferências que tinham sido feitas para uma conta pessoal de Zeinal Bava a partir de uma conta da ES Enterprises no Banque Privée Espírito Santo, localizado na Suíça. Salgado terá afirmado que o tema das transferências para Bava foi-lhe colocado por um responsável da Espírito Santo Financial Group chamado Jean Luc Schneider — suíço responsável pelo acompanhamento mais direto dos pagamentos do ‘saco azul’ do GES. Existindo um contrato assinado, Salgado confirmou que deu uma resposta positiva e ordenou as transferências para Zeinal Bava.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os pagamentos do ‘saco azul’ do GES estão na origem dos indícios de diversos crimes de corrupção ativa no setor privado que são igualmente imputados pelo Ministério Público a Ricardo Salgado.

O Observador enviou diversas questões para Ricardo Salgado e Zeinal Bava para tentar esclarecer as contradições com as declarações de Bava ao Observador e ao Expresso — jornal que noticiou em primeira mão o valor total transferido para o ex-líder da PT.

O ex-líder do BES recusou-se a responder às questões, tendo a sua assessoria de imprensa enviado a seguinte declaração: “O dr. Ricardo Salgado não comenta processos em segredo de justiça”.

Já o ex-CEO da PT e da Oi não enviou qualquer resposta até ao momento de publicação desta peça.

A equipa de “primeiríssima água”

O ex-líder executivo do BES justificou na Justiça os pagamentos feitos a Bava como sendo uma remuneração extra para cativar o CEO da PT e a equipa de “primeiríssima água” que Bava tinha selecionado para ir para o Rio de Janeiro no início de 2011 para reorganizar a Oi. O objetivo, explicou Salgado, seria evitar que os quadros da PT fossem trabalhar para empresas concorrentes e que o próprio Bava fosse contratado por Carlos Slim, o magnata mexicano do setor das telecomunicações que é o grande rival da espanhola Telefónica no mercado da América Latina.

Ricardo Salgado nunca mencionou a explicação que Zeinal Bava tinha dado para estas transferências: um financiamento para Bava e para a sua equipa comprarem ações da PT no contexto de uma total privatização da empresa de telecomunicações. Privatização total essa que só veio a ocorrer com o fim da golden share (26 de julho de 2011) e a saída da Caixa Geral de Depósitos do capital da empresa (24 de outubro de 2013).

Mais relevante: segundo Ricardo Salgado, foi o próprio Zeinal Bava quem propôs ao Grupo Espírito Santo esta operação fiduciária antes de partir para o Brasil.

De acordo com o ex-líder do BES, o conceito da operação passava por disponibilizar 18,5 milhões de euros para que a equipa ficasse cativada durante um determinado número de anos na sequência do sucesso do projeto PT/Oi.

Questionado pelo juiz Carlos Alexandre e pelo procurador José Ranito sobre o que seria o sucesso da operação, Ricardo Salgado terá afirmado que o mesmo seria a conclusão do processo de fusão entre a PT e a Oi. Sendo que o insucesso de tal fusão determinaria o reembolso dos valores transferidos à ES Enterprises.

Recorde-se que os 18,5 milhões de euros foram transferidos em duas tranches (uma na segunda metade de 2010 e outra no inicio de 2011), que a PT anunciou em janeiro de 2011 que iria adquirir cerca de 22% do capital da Oi mas a fusão entre as duas empresas só foi anunciada em outubro de 2013.

Ricardo Salgado terá afirmado ainda que Zeinal Bava terá solicitado que o apoio do Grupo Espírito Santo não fosse transmitido à PT porque tal não seria do interesse de Bava e do seu grupo de gestores que, para todos os efeitos, eram funcionários da empresa portuguesa, e não da empresa brasileira. O que o banqueiro respeitou até porque terá considerado a solução como “construtiva”.

Um ano antes de Zeinal Bava mencionar pela primeira vez ao Expresso a existência de um contrato sobre uma “alocação fiduciária” relacionada com um possível investimento na privatização da Portugal Telecom, Ricardo Salgado afirmava na qualidade de arguido no Tribunal Central de Instrução Criminal que tinha sido assinado um contrato fiduciário com Zeinal Bava, antecipando mesmo que sabia que o Ministério Público Federal da Suíça já tinha enviado a documentação para o procurador José Ranito, que lidera a equipa que investiga o caso BES.

O ex-presidente executivo do BES terá afirmado que, perante o fracasso da fusão PT/Oi, sabia que Zeinal Bava já teria reembolsado ou estaria a tratar de devolver os 18,5 milhões de euros à gestora de insolvência da Espírito Santo International (sociedade que detinha o património da ES Enterprises, entretanto encerrada) no Luxemburgo.

A “oferta” a Bava

A explicação dada por Ricardo Salgado, contudo, não convenceu o juiz Carlos Alexandre. O magistrado terá feito questão de recordar a Salgado a aplicação de cerca de 900 milhões de euros que a PT tinha feito em abril de 2014 em títulos de dívida da Rio Forte — numa altura em que o GES estava desesperado por liquidez por via dos graves problemas financeiros da holding ES International. E fê-lo de uma forma incisiva ao caracterizar as transferências para Zeinal Bava como uma “oferta” do GES para Bava.

Ricardo Salgado, tal como Zeinal Bava fez recentemente, recusou qualquer associação entre os financiamentos da PT ao GES e as transferências realizadas para Bava.

Carlos Alexandre terá solicitado a Ricardo Salgado que identificasse os nomes da equipa de “primeríssima água” que Zeinal Bava queria remunerar por fora. Salgado alegou falta de memória (o que Carlos Alexandre considerou “esquisito”), disse que os nomes não estavam no contrato e solicitou ao Ministério Público que perguntasse a Bava.

Também o procurador José Ranito não acreditou na versão apresentada por Salgado. Além de considerar que os indícios desafiam um juízo de ilicitude, também terá considerado a versão apresentada pelo ex-banqueiro como pouco compreensível.

A tese de Zeinal Bava

Em maio, quase um ano depois das declarações de Salgado no Ministério Público, Zeinal afirmou ao Observador que os 18,5 milhões de euros tinham um destino claro: financiar a compra de ações da PT no momento em que a sociedade fosse totalmente privada (isto é, sem a golden share do Estado) por parte da equipa executiva em funções nesse momento. O investimento por parte dessa futura administração visaria demonstrar ao mercado a maior mobilização da equipa de gestão em torno do projeto da PT. “A alocação fiduciária contratualizada tinha uma finalidade legítima, a concretizar em momento futuro. O objeto do contrato era financiar aquisições de ações da PT, mas as condições de exercício do investimento dependiam da integral privatização desta empresa”, afirmou ao Observador.

Bava acrescentou que, como a “finalidade da alocação fiduciária não veio a ser concretizada”, “o capital e juros, tal como previsto no contrato, foram integralmente devolvidos”. Como a ES Enterprises já estava encerrada, o montante total (que Bava nunca especificou), a devolução terá sido feita ao gestor da massa insolvente da Espírito Santo International, holding do GES que controlava a ES Enterprises. Tal decisão, disse o gestor, foi tomada no momento que assumiu as funções de líder executivo da Oi (junho de 2013).

O ex-CEO da PT admitiu ao Observador que não chegou a contactar a equipa de quadros da PT que, segundo a sua versão, iria comprar ações da empresa com os montantes disponibilizados por Ricardo Salgado.