Zeinal Bava, ex-presidente executivo da Portugal Telecom (PT), recebeu duas transferências da sociedade Espírito Santo (ES) Enterprises, uma sociedade offshore com sede nas Ilhas Virgens Britânicas. Conhecida como o ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo (GES) e sem existência formal no organograma do grupo da família Espírito Santo desde meados da década de 2000, a ES Enterprises transferiu duas tranches que somaram um total de 18,5 milhões de euros para uma conta num banco internacional aberta em nome pessoal de Bava.

A informação sobre o valor total das transferências foi dada em primeira mão na edição do último sábado do semanário Expresso, não tendo sido adiantados mais pormenores.

Ao que o Observador apurou, a primeira transferência terá ocorrido na segunda metade de 2010 e ascendeu a cerca de 10 milhões de euros, enquanto a segunda tranche terá sido recebida por Bava nos primeiros meses de 2011 e atingiu um valor de cerca de 8,5 milhões de euros.

O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) está a analisar a eventual relação entre as datas das transferências realizadas pela ES Enterprises (que em 2007 mudou o nome para Enterprises Managment Services) e os seguintes momentos-chave da gestão da PT liderada por Bava:

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  • 28 de julho de 2010 — O conselho de administração da PT anuncia a venda da sua participação de 50% na empresa brasileira Vivo aos espanhóis da Telefónica por 7,5 mil milhões de euros. De acordo com as condições do negócio anunciadas pela PT, a Telefónica transferiu 4,5 mil milhões de euros até setembro de 2010, mil milhões de euros a 30 de dezembro de 2010 e os restantes 2 mil milhões até 31 de outubro de 2011. Dos cerca de 7,5 mil milhões recebidos, cerca de 1,5 mil milhões de euros (que equivale a 20% do total do produto da venda) foram distribuídos pelos acionistas da PT, incluindo o Banco Espírito Santo (BES). Foi igualmente anunciado neste dia pelo conselho de administração liderado por Bava que a PT iria adquirir 22,4% do capital da empresa brasileira Oi, concorrente da Vivo.
  • 26 de janeiro de 2011 — A PT e a Oi anunciam o acordo definitivo para a aquisição de 22,4% do capital da Oi e a entrada da empresa brasileira no capital da PT com uma posição de 10% — um negócio avaliado em cerca de 3,5 mil milhões de euros.

O DCIAP está a investigar, nomeadamente, se existiu alguma intenção de satisfazer os interesses do BES, acionista da PT que era detido pela Espírito Santo Financial Group — a holding financeira do GES, ao qual pertencia a ES Enterprises. Ao que o Observador apurou, tais indícios poderiam configurar uma alegada prática de corrupção no setor privado — um crime criado em 2008 pelo governo de José Sócrates.

No âmbito das investigações ao chamado Universo Espírito Santo (a designação que a Procuradoria-Geral da República escolheu para o caso BES/GES), os casos relativos à Portugal Telecom foram autonomizadas em inquéritos específicos. Além da aplicação de 897 milhões de euros em dívida da Rio Forte, também a venda da participação na Vivo e a entrada no capital da Oi está sob investigação.

O jornal Público noticiou em 2015 que esses negócios estavam sob investigação judicial para apuramento de “pagamentos extra” de cerca de 200 milhões de euros a políticos portugueses e brasileiros e a gestores da PT e da Oi, informação que foi confirmada pela Procuradoria-Geral da República.

A venda dos 50% da Vivo detidos pela PT foi um dos assuntos do ano em 2010. Perante uma proposta dos espanhóis da Telefónica de 7,2 mil milhões de euros, o governo de José Sócrates usou a golden-share a 30 de junho de 2010 para impedir a venda quando 74% dos acionistas aceitava a proposta dos espanhóis — nesse grupo estava o BES, a Ongoing e a Visabeira com o apoio da administração de Zeinal Bava. O ‘murro na mesa’ de Sócrates foi dado uma semana antes de as autoridades judiciais europeias declararem como ilegais os direitos especiais do Estado na PT.

Em julho, após os espanhóis terem aumentado a sua proposta para 7,5 mil milhões de euros e a PT ter conseguido um pré-acordo para a entrada na Oi, José Sócrates aprovou o negócio. O ex-primeiro-ministro considerava essencial para o interesse nacional a manutenção da PT no Brasil.

Durante a audição na Comissão Parlamentar de Inquérito do caso BES em 26 de fevereiro de 2015, que ficou marcada pela sua falta de memória sobre os investimentos da PT em dívida do GES, Bava fez questão de declarar que foi contra a venda da Vivo pela PT, acrescentando que os acionistas tinham, contudo, legitimidade para decidir.

Os esclarecimentos de Bava

Contactado pelo Observador, Zeinal Bava nega que as transferências de 18,5 milhões de euros tenham algo a ver com qualquer favorecimento ou satisfação dos interesses do BES ou do GES. “Não há absolutamente qualquer relação” entre as transferências realizadas e as decisões da PT, diz o ex-CEO da empresa.

Bava confirmou ao Observador que recebeu duas transferências da ES Enterprises, e os valores de cada tranche, para uma conta bancária internacional — “conta identificada pelo meu próprio nome”. “O [facto de] terem sido duas transferências que totalizaram 18,5 milhões de euros, não teve a ver com conveniência minha”, explicou.

Questionado sobre as razões para a realização das transferências, o gestor fez questão de enfatizar que “antes de mais, não se trata de um empréstimo mas de uma alocação fiduciária”. “Como já afirmei publicamente no Correio da Manhã e Expresso, não recebi remuneração, contrapartida ou compensação e tratou-se, sim, de uma alocação fiduciária contratualizada e afetada a uma finalidade que não veio a ser concretizada, pelo que o capital e juros, tal como previsto no contrato, foram integralmente devolvidos”, afirmou.

O que é uma alocação fiduciária? 

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Significa um contrato pelo qual a empresa A confia ao senhor B alguma coisa (dinheiros, títulos mobiliários, etc.) sem dar ou emprestar. No caso em apreço, significa que a sociedade ES Enterprises confiou 18,5 milhões de euros a Zeinal Bava em nome de terceiros para um negócio futuro. Em termos simples, a sociedade do Grupo Espírito Santo, segundo a explicação de Bava, pediu-lhe para tomar conta de 18,5 milhões de euros enquanto o negócio futuro não se concretizava.

Zeinal diz que a “alocação fiduciária” tinha um objetivo: financiar a compra de ações da PT no momento em que a sociedade fosse totalmente privada (isto é, sem a golden-share do Estado) por parte da equipa executiva em funções nesse momento. O investimento por parte dessa futura administração visaria demonstrar ao mercado a maior mobilização da equipa de gestão em torno do projeto da PT. “A alocação fiduciária contratualizada tinha uma finalidade legítima, a concretizar em momento futuro. O objeto do contrato era financiar aquisições de ações da PT, mas as condições de exercício do investimento dependiam da integral privatização desta empresa”.

Ao Expresso, Bava tinha afirmado que não chegou a contactar o “grupo de altos quadros da PT” que faria parte da futura administração da empresa. Questionado porque razão isso nunca chegou a acontecer, o gestor não respondeu diretamente, optando pela seguinte explicação: “Porque a aplicação fiduciária seria materializada em momento diferido no tempo, o qual nunca chegou a ocorrer, conforme já disse publicamente, pelo que nunca foi comprada uma única ação diretamente ou através de qualquer produto derivativo”, afirma.

O investimento nunca veio a acontecer, diz o gestor, porque a privatização total atrasou-se e só se veio a verificar quando a Caixa Geral de Depósitos vendeu a sua posição de cerca de 6% no final de 2013 e quando os direitos especiais do Estado foram extintos em julho desse ano. Além disso, o próprio Bava sairia do cargo de CEO da PT para assumir idênticas funções na Oi em junho de 2013. Foi nessa altura, diz, que “decidi, cumprindo aliás o contrato, devolver o valor alocado e juros”.

Bava não diz cabalmente que tenha contactado nessa altura o GES para devolver o dinheiro mais juros. Ao Expresso, o ex-gestor da PT tinha afirmado que tinha sido ele a propor a devolução dos montantes à massa falida da Espírito Santo International (ESI), holding luxemburguesa do GES titular da participação na ES Enterprises. Questionado pelo Observador sobre a data em que o gestor da insolvência da ESI o notificou a aceitar a sua proposta, Bava respondeu: “Não foi a massa falida [ESI] quem propôs a devolução. Fui eu quem tomou a iniciativa da mesma, bastante antes até da insolvência das empresas do GES, tendo-me sido emitida integral quitação da devolução do capital recebido e respetivos juros”, explica.

Questionado sobre o montante de juros “em condições de mercado” que pagou, a data em que procedeu aos primeiros contactos com o GES para devolver o dinheiro, a data em que procedeu à transferência para a massa falida da ESI e o montante total dos juros pagos desde o momento em que recebeu as transferências da ES Enterprises, Bava não deu pormenores e limitou-se a responder:

A devolução efetuou-se pela via oficial, pelo que não me sinto autorizado a divulgar mais pormenores, mas a iniciativa de cumprir o contrato através da devolução foi minha, tendo recebido quitação oficial do capital e juros, emitida, aliás, com referência ao contrato”.

“Um contrato lícito”

Ricardo Salgado e o seu advogado (Francisco Proença de Carvalho) receberam igualmente questões escritas do Observador. Através da sua assessoria de imprensa, foi dada a informação de que ambos se recusavam a prestar esclarecimentos devido ao segredo de justiça. Francisco Proença de Carvalho tinha afirmado ao Expresso o seguinte: “Tanto quanto é do conhecimento genérico do meu cliente [Ricardo Salgado], e não estando na posse de elementos para confirmar ou infirmar certos detalhes questionados, a operação em causa foi realizada ao abrigo de um contrato lícito”.

O Observador contactou igualmente a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), mas fonte oficial não quis fazer comentários.

A CMVM continua a investigar suspeitas da prática de diversas violações do Código de Valores Mobiliários por parte dos membros da administração da Portugal Telecom, SGPS (que hoje tem o nome de Pharol) e de outras sociedades do Grupo PT, nomeadamente no âmbito do investimento de 897 milhões de euros em dívida da Rio Forte. Este investimento não foi reembolsado em julho de 2014 pela sociedade do GES, como contratualizado, levando a uma revisão profunda da fusão que tinha ocorrido com a Oi e à consequente derrocada do Grupo PT.

Corrigido o valor da proposta da Telefónica que foi vetada pelo governo de José Sócrates através do uso da golden-share