O que é hoje a dança contemporânea? A pergunta parece dar o mote para os dois espetáculos que esta sexta-feira se estreiam em Lisboa. Filipa Francisco apresenta “Projecto Espiões” no Teatro Maria Matos, Victor Hugo Pontes exibe “Uníssono”, no Teatro São Luiz. A primeira parte da memória para reconstruir as últimas décadas da dança contemporânea em Portugal, a outra questiona a dança, a possibilidade da abstração e os seus códigos colocando os intérpretes a movimentar-se ao mesmo ritmo, os mesmos passos. As respostas – se é que existem – são múltiplas e divergentes.

No centro do palco estão três quadros enormes, de ardósia. Dois homens e uma mulher vão escrevendo, com um pau de giz, as suas memórias, as suas questões, a sua identidade, o que ali os levou. É “Projecto Espiões”, a peça de Filipa Francisco que até domingo está no Maria Matos, em Lisboa, interpretada por Francisco Camacho, Miguel Pereira e Sílvia Real. E que nasce de um outro projeto, que Filipa Francisco desenvolveu no CCB, em 1998, no qual propôs a três intérpretes (a própria, João Galante e Carlota Lagido) coreografar para os respectivos coreógrafos-fetiche (Francisco Camacho, Madalena Vitorino e João Garcia Miguel). Agora, quase 20 anos depois, decidiu que era tempo de fazer um balanço e pesquisar na memória e nos arquivos o que aconteceu desde então na dança contemporânea portuguesa e como isso afetou quer o seu caminho, quer o da própria dança.

“Passados todos estes anos de história da dança, em que continuámos a trabalhar juntos e a fazer o nosso trabalho individual, quis novamente juntar artistas da minha vida. Quis voltar à minha profissão, à minha história, e através destes três coreógrafos poder fazer uma reflexão sobre o meu caminho”.

Muito do que aconteceu na história da dança contemporânea portuguesa está neste palco. Cada um dos intérpretes-criadores pensou os seus últimos 20 anos, o que fez, o que viu, a sua biografia, a sua memória. Tudo foi transformado, atualizado e transposto para o palco, à luz do presente. Além disso, Filipa Francisco pediu-lhes que recordassem momentos de peças importantes no seu percurso (como “Gust”, de Francisco Camacho ou “Pinacolada”, de Paula Massano).

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Sendo um trabalho conjunto, a peça representa a história, o caminho e a memória de cada um. E se cada intérprete cria à sua maneira, recorrendo à sua biografia ou às suas referências para construir o seu trabalho, há algo que, diz Filipa Francisco, é comum a todos: “Quisemos trabalhar uma ideia de transformação e de presente. Apesar de termos as memórias como ponto de partida, elas são sempre feitas em transformação e no presente. Há uma ideia que vem da história mas que é atualizada. Não ficamos presos ao passado”.

Mas como caracterizar estes últimos 20 anos? O que mudou nas últimas décadas? “Estávamos à procura desse lado: o que mudou, o que ficou, do que é que ainda queremos falar no presente e para o futuro? Há a reflexão sobre a forma como trabalhamos criativamente, mas também sobre um lado muito precário da nossa profissão: continuamos a trabalhar na precariedade. Ao mesmo tempo há uma comunidade da dança que, mais ou menos próxima, continua cúmplice. Isso é uma coisa que foi crescendo e se foi sedimentando ao longo dos anos. E que acho que vai continuar no futuro”.

Cumplicidade que a criadora tem com os intérpretes com quem trabalha, a quem dá total liberdade para criar. “O meu nome nunca aparece sozinho, é sempre “Filipa Francisco com…”. As peças não partem só de uma pessoa, são o que são pelo encontro específico com a equipa. Neste caso ainda mais, por ter ido buscar estes coreógrafos que têm uma palavra muito forte a dizer sobre o seu próprio trabalho e uma reflexão sobre o que viveram”. O que se espia aqui então? “Estávamos a tentar espiar a própria vida, a nossa biografia e, através dos arquivos, a história da dança – que não usámos de forma exaustiva, preferimos usar aquilo que o corpo lembra”.

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Foi ao espiar esses arquivos que perceberam o quanto se tem perdido “por não haver financiamento para se guardar o que se vai fazendo”, que vai ficando na memória de quem fez e na do público mas que “corre o risco de se perder para as próximas gerações”. E, se a efemeridade faz parte da dança e a memória não é uma coisa fixa, o certo é que, diz Filipa Francisco, se tornou difícil encontrar certas peças que queria ver em arquivo, seja por não existirem, seja por estarem em mau estado. “Deveria pensar-se em como se poderia fazer um arquivo. É um trabalho importante a ser feito para as novas gerações poderem ver, tomar contacto. Esta peça fez-me pensar na possibilidade de se trabalhar esse aspeto: pensar o que é um arquivo de dança”.

O que se quer da dança contemporânea portuguesa hoje?, é uma das questões colocadas na peça. Filipa Francisco não tem uma resposta mas avança algumas linhas: a necessidade de se poder trabalhar com condições, de se possibilitar aos artistas continuarem nessa busca, com riqueza e diversidade, ao mesmo tempo que se consiga chegar ao público e a vários tipos de públicos, sem pensar em agradar-lhes mas trabalhando a ideia de que “a dança contemporânea não é um bicho, pode através dos sentimentos chegar a toda a gente”. E como está a dança hoje? “Continua a ser muito rica. Ter tido contacto com vários coreógrafos em vários países e poder trabalhar em Portugal fez-me dar cada vez mais valor ao que temos aqui: uma comunidade muito rica a todos os níveis, que está muita alerta politicamente, em que há uma enorme diversidade criativa e um contacto com o exterior. Claro que trabalhando ao longo dos anos na precariedade tudo isto se tornou, também, pequenino, podíamos ter crescido muito mais a todos os níveis. Mas há uma riqueza enorme que devia ser olhada politicamente como tal. Neste momento há uma espécie de esperança. Vamos ver o que nos traz o futuro”.

Sozinhos mas todos juntos

Num outro espectro está “Uníssono”, o espetáculo que Victor Hugo Pontes estreia no Teatro São Luiz (onde se mantém até domingo, partindo depois para o Porto, onde sobe ao palco do Rivoli sexta-feira, 7, e sábado, 8), interpretado por André Cabral, Bruno Senune, Elisabete Magalhães, Teresa Alves da Silva e Valter Fernandes. Em palco está um homem, nu. Movimenta-se sozinho, no silêncio.

Quando sai de cena, outro chega. Parece completar-lhe os movimentos, que nunca chegam verdadeiramente a ser interrompidos. Minutos mais tarde outro entra, o primeiro sai, o movimento continua, contínuo, ainda em silêncio. De súbito escutam-se os primeiros acordes de uma música que vai enchendo a sala. Chega uma mulher, um homem, outra mulher, mais homem. São já cinco em palco, os movimentos iguais, uns entram, outros saem, os mesmos, outros? São cinco? São dez? Apenas um?

“Tenho um fascínio muito grande por pessoas a mexerem-se em simultâneo, pelo uso do uníssono na dança, uma coisa que, embora ainda se mantenha no ballet clássico, deixou quase de existir na dança contemporânea, onde se procura uma expressão mais livre do corpo e da fisicalidade. A partir do momento em que colocamos as pessoas em uníssono estamos a castrá-las, passam a ter que respeitar certos códigos e padrões que fazem a forma de onde vão sair todos”, diz Victor Hugo Pontes.

Lembra que é ainda possível, no entanto, encontrar esse uníssono nas academias. “O uníssono nivela as pessoas dentro de um padrão, criando esse padrão. Foi a partir daí que resolvi construir esta peça, que é extremamente abstrata. Não há narrativa. Na música, as pessoas nunca se questionam sobre qual é a história daquela música. Num espetáculo de dança essa questão está quase sempre presente: que história é esta? Com este espetáculo renuncio, em absoluto, à narrativa ou à ideia de narrativa”.

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Claro que uma ausência de história, ou enredo, não significa uma ausência de pensamento. E aqui Victor Hugo Pontes pensa o coletivo em oposição ao individual. “Quis ver como conseguiria pôr cinco pessoas a fazer uma partitura coreográfica ao mesmo tempo e perceber se é ou não possível e o que é que isso simboliza: há a ideia de unidade? É a soma das partes? Perde-se a identidade? A partir do momento em que começo a fazer a mesma coisa que o outro não estou a anular a minha própria identidade? E há, também, uma relação de escala que me interessa imenso: quando um gesto mínimo é reproduzido por cinco, cem, duzentas pessoas, qual é o impacto?”

Não deixando de notar que “Uníssono” tem o seu cunho, com a sua estética, linguagem, fisicalidade, Victor Hugo Pontes considera que este espetáculo é diferente de tudo o que tem vindo a fazer até agora. Aliás, foi a isso que se propôs. “Tento que cada espetáculo seja um novo desafio, crio-me rasteiras, forço-me a seguir por caminhos que não são aqueles por que iria naturalmente, obrigando-me a descobrir novas soluções”. Rasteiras que podem ser criadas na estética, no tema ou na própria equipa. “Não faço um espetáculo sozinho, sou eu que tomo as decisões, mas somos uma equipa. Digo que este espetáculo se chama ‘Uníssono – composição para magníficos bailarinos’”.

E na dança contemporânea portuguesa? Haverá um uníssono naquilo que está a ser feito ou uma divergência total? “Acho que não há um uníssono nas linguagens, há linguagens muito ecléticas e diferentes umas das outras. Os códigos da dança são universais, existem excelentes propostas de dança contemporânea em Portugal mas que eu não diria que são identificativas de um país. A palavra não é motor, a dança é universal. As propostas feitas em Portugal são muito boas, gosto muito do que os meus pares estão a fazer. Sermos um país muito pequeno fez-nos ir lá para fora procurar informação, ver o que se fazia nos outros países, o que fez com que construíssemos a nossa linguagem a partir de outros códigos. Há 20 anos não existia dança contemporânea em Portugal ou existia muito pouca coisa. Atualmente já há”.

“Uníssono”, no Teatro São Luiz em Lisboa, sexta e sábado às 21h; domingo às 17h30. No Teatro Rivoli, no Porto, dias 7 e 8.
“Projecto Espiões”, no Teatro Maria Matos, sexta e sábado às 21h30, domingo às 18h30.