Todo o grupo de amigos deseja um recanto. Uma garagem com frigorífico, de preferência com vizinhos surdos, sofás e poltronas ou qualquer objeto que sirva o propósito de dar descanso às pernas. A consola e uma pilha de jogos, quase todos emprestados. O número de telefone das pizzas da rua de trás. Se este núcleo for de seis e se os mesmos forem uma banda, tudo o que foi detalhado atrás pode bem ser substituído por um estúdio decente. Pode não, deve.
Tarefa concluída com sucesso pelos You Can’t Win, Charlie Brown (YCWCB) que há dois anos, depois de Diffraction/Refraction, abdicaram do nomadismo, do toca ali e acolá, onde estiver vago, para achar o seu lugar ao sol, neste caso à sombra, que raro é o estúdio que tem sequer uma janela. Mudaram-se para o HAUS – pousio de gente como os PAUS ou os Linda Martini – e puseram-se a tocar. E essa liberdade de estarem sujeitos a horários, a turnos tabelados em casa de outrem, fê-los querer mudar a disposição da mobília.
Marrow, editado esta sexta-feira (dia 6) pela Sony Music, percorre esse sentimento de alteração da ordem, há quadros que vão perdendo a piada se dormem sempre sobre a mesma parede. É certo que este novo lar, no HAUS, teve relação direta com a nova paisagem, ainda assim, “a ideia já estava definida antes de virmos para aqui”, afirma Afonso Cabral, antes de prosseguir: “Quisemos fazer um disco que não fosse tanto um disco de estúdio, que fosse bastante mais de uma banda a tocar. Não fomos 100% a fundo nisso, porque achámos que não precisávamos, mas a ideia original era essa: deixar de ter um disco em que o estúdio é um elemento primordial e onde as canções pudessem existir sozinhas, apenas connosco”.
Curiosa coincidência — acreditemos que elas existem — esta de obter um estúdio próprio e de, simultaneamente, se querer que o estúdio seja quase invisível. É por isso natural, ou, não tão estranho que a melancolia, a delicadeza, de Diffraction/Refration (2014) soe agora tão longínqua. Os YCWCB parecem ter perdido a timidez, estes seis rapazes meteram todos os dedos na ficha, algo que sempre se pretende após uma estadia mais amena. “Chegámos a esta sonoridade mais rock e mais elétrica sobretudo por isso, foi a nossa solução para encher o espaço no lugar do estúdio e para que a coisa nos desse pica. Há também uma preocupação com o live, sem dúvida, e também porque o último disco era algo mais bucólico, quando estás a fazer essas coisas apetece-te sempre fazer o contrário”, confirma Afonso Cabral.
E quanto a isso há pouco a fazer, contrariar uma das grandes condições do ser humano – de querer experimentar o segundo trilho quando já se conhece o primeiro – é evitar o que nos está no sangue. E para isso não contemos com os YCWCB. Nem para isso para testar hábitos que não os seus, o que aqui se escuta de mais elétrico, mais rock, vai também com um aperfeiçoar dos efeitos eletrónicos. Isso, contudo, não significa que tenham desatado a sair à noite. Nada disso: “Tirando talvez o Tomás [Costa, baterista], saímos pouco à noite, somos uma grande seca. Não foi de todo por aí, diria até que o disco está sobretudo mais elétrico, se calhar do lado eletrónico está um bocadinho mais à frente, mas já existia. E sempre ouvimos coisas diferentes do que andámos a fazer, portanto foi mais explorar um lado que ainda não tínhamos explorado”.
Lá se segue a questão do orgulho, aquela que sabemos insistente, que nem por isso devemos ignorar. Afonso Cabral não se considera mais completo, não tem o peito mais cheio, agora que Marrow está concluído. Só que tudo o que é descoberta traz muros que se desconheciam: “Não posso dizer que me sinta mais orgulhoso do que da última vez. Senti-me orgulhoso, mais neste disco do em qualquer outro, no momento em que percebemos, antes de o gravar, ‘ok temos aqui um disco’. De todos, esse ponto, foi a mais difícil de encontrar, este novo lado, no início, foi quase criar uma banda nova”.
Espreitar as canções deste Marrow, tentar escrutinar-lhe os seus nomes é uma empreitada divertida. O humor, esse, está cá sempre. O nome do disco refere-se por certo à palavra inglesa para medula óssea, embora também possa ser um legume – uma espécie de courgette. E sobram os títulos engraçados: “Pro Procastinator”, tema sobre a “procrastinação, algo com o qual já todos sofremos um pouco”, garante Afonso Cabral; e ainda “Mute”, aquela palavra, ou botão, que todos gostávamos de carregar de vez a vez, “às vezes até em nós próprios”, garante. Falemos ainda de “Above the Wall”, single de onde sacamos os segundos finais mais trippy dos últimos tempos, ousadia que teve para ser bem mais longa, “mas em disco já era um bocado esticado”, explica Afonso.
Conversa que, lá para o final, trata de aterrar em solo obrigatório. A identidade dos YCWCB, a harmonia pegada, aquela sobreposição vocal que só eles fazem assim, continua por aqui. Em Marrow há por certo mais eletricidade, as guitarras estão mais convincentes e atrevidas, todos sabemos, porém, que nunca se muda tudo. Há sempre um candeeiro que decide bater o pé. “Já percebemos há muito tempo que é o elemento que nos define melhor, conseguimos fazer aquilo de uma forma diferente das outras bandas, sobretudo em Portugal, diria. Seria um bocado idiota, numa altura em que estamos a mudar tanta coisa, mudar também isso. Continuamos a querer que as pessoas percebam, ao ouvir, que isto são os You Can’t Win Charlie Brown”, diz.
No final das contas o destino é só um: Lux Frágil, dia 13, para ver Marrow a sair da toca, ainda que o local não fique a dever muito à luz. E embora já lá tenham tocado, convém explicar que agora estarão, quase de certeza, melhor do que nunca. “Acho que é um disco que pede proximidade e suor. E imperiais na mão”. Vamos a elas.