O documentário ganha fôlego ao minuto 37 quando aparece na imagem um bilhete escrito à mão por Cruzeiro Seixas: “É bem contraditória ou cómica a situação dos homossexuais ou até dos ‘artistas’ que querem ser reconhecidos por uma sociedade que condenam.”
Acrescenta Cruzeiro para a câmara: “Isto vem da satisfação que a maior parte dos homossexuais têm por hoje serem reconhecidos como gente e tendo realmente os seus direitos. Eu preferia quando não tinha os meus direitos e estava fora da sociedade. Estar fora da sociedade acho a coisa mais bela que pode acontecer.”
A seguir, outra imagem de um recorte datilografado com a seguinte citação: “Pensamos que a homossexualidade é uma coisa muito triste – Álvaro Cunhal, entrevista na RTP2.” E por baixo o comentário de Cruzeiro Seixas: “Mais triste é por certo o estalinismo”.
“As Cartas do Rei Artur”, documentário biográfico sobre o artista plástico e poeta Artur do Cruzeiro Seixas, um dos expoentes do movimento surrealista em Portugal, fixa-se na temática da identidade e da orientação sexual, revelando uma personagem ambígua, em termos de percurso e até politicamente, eterno refém de uma paixão de juventude – a paixão por Mário Cesariny de Vasconcelos, o maior dos nossos surrealistas.
Realizado por Cláudia Rita Oliveira, o filme será apresentado pela primeira a 23 de outubro, no âmbito do festival DocLisboa. É um dos 12 filmes da secção Competição Portuguesa, candidato a um prémio no valor de oito mil euros.
Trata-se da primeira longa-metragem desta realizadora, de 39 anos, que antes assinou a curta “Candidíase” (2008). Trabalha essencialmente como montadora, tem no currículo o documentário “José e Pilar” (2010), de Miguel Gonçalves Mendes, ou a série da RTP “História a História”, com Fernando Rosas.
“É um filme sobre a condição humana”, resume Cláudia Rita Oliveira, que pegou no tema por sugestão de Miguel Gonçalves Mendes, com que tem trabalhado na produtora Jump Cut.
“Fala da inevitabilidade do desencontro, o que tem a ver com a forma como o Cruzeiro se relaciona com o mundo e especialmente como se relacionou com o Cesariny, que até era para não estar no filme. Depois, tornou-se inevitável que estivesse.”
Daí o diálogo com o documentário “Autografia” (2004), de Mendes, em que Cláudia Rita Oliveira foi operadora de câmara.
Esse documentário com Cesariny (1923-2006) foi à época recebido com assombro, por reabilitar a figura do poeta-pintor no ocaso da vida, ou pela mera genialidade da personagem. Mas não tinha um ponto de vista claro. Este outro tem. É promovido como a narrativa do desencontro amoroso entre os dois amigos artistas.
“Acho que nunca seria possível o Cesariny e o Cruzeiro encontrarem-se”, reflete a realizadora. “Cesariny vivia no presente, é óbvio que quando o conheci, aos 80 e tal anos, já não estava tão no presente, mas sempre foi um homem que viveu os momentos. O Cruzeiro não, está constantemente a voltar ao passado, e não é só pela idade que já tem. Estará sempre a projetar coisas para o futuro e isso vê-se em todos os momentos de fuga que teve, morando em vários países e cidades. Há um desencontro consigo mesmo.”
O espectador fica a par da paixão, do corte de relações, do reatar já na velhice. E da mágoa, sugerida pela narrativa, mas não verbalizada por Cruzeiro Seixas. É uma história triste.
Começa com uma frase de Cesariny, dita pelo próprio em off e retirada de Autografia: “O Artur do Cruzeiro Seixas é como se tivesse um cérebro dividido: metade é todo luz, porque faz coisas muito belas, e a outra metade é uma confusão total, não se percebe nada; quando aquilo se baralha, é de fugir.”
Logo depois, o visado toma a palavra (aqui citado de forma condensada): “Vivo apaixonado pela vida e as pessoas, uma pessoa é sempre uma coisa linda de se olhar, contactar. Depois vem a desilusão, a pessoa é estúpida que nem sei lá o quê. Apesar de tudo, o que me desespera mais neste momento é realmente os amigos que me faltam. Está a morrer toda a gente da minha geração, já não tenho a certeza se me apetece estar cá sem eles. É uma prova muito dura.”
Acrescenta, como se fosse uma conclusão: “Da minha vida nada vai ficar definitivo, clarificado. Não vivi, mas deixarei documentos desse não viver.” Será este um documentário de ficção?
A realizadora dá resposta negativa, mas salvaguarda que “há ficção em todo o lado, no sentido de construção”. “É o documentário mais honesto que podia fazer em relação ao Cruzeiro Seixas que conheci”, sublinha.
Os “documentos desse não viver” são as quatro dezenas de cadernos da autoria de Cruzeiro – com recortes, apontamentos, imagens, miscelânea de décadas –, que doou em 1999 à Fundação Cupertino de Miranda, de Vila Nova de Famalicão. Mário Cesariny viria a seguir-lhe os passos, em 2006, ao doar todo o seu espólio à mesma entidade.
Cláudia Rita Oliveira passou várias semanas em Famalicão a consultar e filmar os cadernos, “objetos afetivos”, como lhes chama, “anómicos” porque “a própria fundação não sabe como os estudar, por não terem cronologia definida.”
São dali retiradas citações ou imagens que compõem o documentário. Como esta:
“O Cesariny acusava-me duramente de não assumir a minha homossexualidade perante os meus pais. Mas que ideia tem da liberdade das pessoas? Eu acho que os meus pais tinham o direito de ter a visão da vida que tinham, e isso nunca me impediu de ser mais livre na prática da homossexualidade que o foi o Cesariny.”
Outra das fontes são as cartas que Cesariny e Cruzeiro Seixas trocaram entre 1941 e 1974, compiladas em 2014 no livro Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas.
Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas nasceu na Amadora há 95 anos, cresceu no Estoril, fez o serviço militar em Macau e na Índia, depois viveu em Angola por 14 anos, até ao rebentar da Guerra Colonial.
“Amei muito o Mário, o que não quer dizer que fôssemos amantes, não fomos”, diz Cruzeiro em imagens de arquivo. “O Mário e eu conhecemo-nos na escola [António Arroio, em Lisboa]. O Mário era um rapazinho que trazia consigo já uma força muito grande da genialidade. Nasceu entre nós uma grande amizade, qualquer coisa física também, que havia. Isso contribuiu para que nunca mais nos largássemos.”
Durante a rodagem, entre 2013 e 2015, Cruzeiro “estava sempre a falar do Cesariny”, conta a autora. “Acho que tem consciência do desencontro, mas não se confronta com ele.”
Neste cenário trágico, o pitoresco aparece quando o pintor se diz cansado de dar entrevistas à imprensa, ou acha uma chatice ir à inauguração de uma rua com o seu nome, ou quando passa de carro por um cemitério e diz: “Pode deixar-me já aqui, o velho não tem solução, a não ser o cemitério”. Para além, claro, de aventuras sexuais relatadas, como aquela em que Cruzeiro, antes do 25 de Abril, encantou um dos polícias da esquadra a que tinha ido parar apenas por ser homossexual.
“O filme demorou quatro anos a ser feito porque só pude dedicar-me a ele quando não tinha outros trabalhos”, revela Cláudia Rita Oliveira, dando nota das dificuldades. “A produtora pagou-me as viagens a Famalicão, as estadias. No fim conseguimos um apoio de 16 mil euros do Instituto do Cinema, para a finalização. É preciso pagar estúdio, músicos, correção de cor, direitos de autor. A Câmara de Loulé deu-nos 1500 euros e da Câmara de Famalicão também deve vir algum dinheiro. Atualmente, são as condições e os valores normais no cinema português.”