As viagens implicam quase sempre experiências ou momentos inesperados, mas para um grupo português de viajantes, uma rotina não falha. Todos os anos reúnem-se em dois almoços, de seis em seis meses, no Norte e no Sul do país. O “Almoço dos Viajantes” – criado por João Paulo Peixoto, o português mais viajado segundo o The Best Travelled – aconteceu este domingo e teve um convidado especial: Harry Mitsidis, um dos homens mais viajados do mundo e que ocupa atualmente o 4º lugar do mesmo ranking.
Harry nasceu em Londres. No entanto, com um pai grego e uma mãe sul-africana, o seu destino nunca esteve verdadeiramente preso a um lugar. Hoje é um viajante profissional: já visitou todos os países do mundo (o número total é 193 segundo a Organização das Nações Unidas) e continua na busca incessante de novos lugares e experiências. Foi responsável pela criação do website The Best Travelled (TBT), uma comunidade de viajantes que se rege pela divisão do mundo em 1.281 regiões. O futuro de Harry Mitsidis passa por visitar todos os lugares que ainda faltam na lista e revisitar os países mais pormenorizadamente. Portugal está no topo dos países que mais gostou de visitar.
“Há pessoas que se consideram viajantes, mas apenas se movem”
A partir de que momento é que viajar se tornou uma atividade a full-time?
Foi um processo gradual. Até 2006, eu trabalhava e viajava ao mesmo tempo. Tinha sorte porque era professor universitário e, portanto, usufruía de tempo livre suficiente para combinar as duas coisas. Depois deixei o meu emprego em 2007, para que pudesse visitar todos os países do mundo. Num único ano viajei por 75 países. Fiquei tão viciado que nunca mais consegui ou pude parar. É realmente como uma droga. A partir do momento em que se começa, não se pode voltar atrás.
Como é que se passa de um “emprego normal” para um tão inesperado como viajante profissional?
Depende muito se é uma pessoa que gosta de coisas inesperadas ou não. As pessoas que gostam de ter uma rotina ou um trabalho quotidiano nunca irão viajar da mesma forma que eu. Talvez viajem nas férias para relaxar e para conhecer o mundo. Por outro lado, eu sempre fui muito curioso, desde novo. A minha maior dificuldade era ter um emprego e uma vida normal. Era uma perspetiva difícil da minha vida, sentia que tinha de me enquadrar. Agora que sou viajante a full-time, sinto que sou o meu verdadeiro ‘eu’. A transição de um estilo de vida para outro não foi difícil. Às vezes, sinto que deveria ter alguma rede profissional, talvez um part-time. Mas mesmo com um part-time, não poderia ir quando e onde quero com facilidade.
Viajar profissionalmente pode ser uma atividade sustentável no início da carreira?
Nos primeiros tempos, viajar profissionalmente não foi fácil. Em 2000 comecei a viajar para sítios complicados. Não é o mesmo grau de dificuldade que existe hoje em alguns países. Nessa altura, fiz uma viagem para a Moldávia mas os meus amigos e família só me diziam: “Estás louco?”, “Porque vais para lá?”. Tinha sempre de me justificar. Quando se vai para algum país, queremos saber o que se passa lá e como aquilo é. Não queremos acreditar no que nos dizem ou no que lemos. A maior dificuldade era o facto de não ter muito apoio. Eu acredito que a maioria das pessoas quer colocar-nos numa caixa e encontrar um lugar adequado para cada um, contudo isso nem sempre resulta. Depois veio a dificuldade de lidar com os meus medos em países que eram mais ‘desafiadores’: não falar a língua, as questões de segurança, o perigo. Aí era uma decisão de me tornar ‘maior’ do que eu, ou seja, ir em frente e aprender a não ter medo. Trata-se de uma experiência enriquecedora, sempre com alguns percalços.
Hoje em dia, temos os céticos que dizem que viajar custa muito dinheiro. Já os viajantes dizem que tal suposição é um mito. Qual é a sua a opinião?
Tem muito a ver com o modo como se viaja. Em todas as vertentes da nossa vida, depende da forma como usamos o dinheiro. Comer custa muito dinheiro? Bem, depende. Podemos almoçar/jantar em casa ou num restaurante com estrela Michelin. Acho que se pode aplicar o mesmo raciocínio às viagens. Pode adaptar-se o orçamento às possibilidades. Neste momento, eu acho que estou a meio da estrada, cerca de 45 por cento: quando era mais jovem, dormia em hostels ou até não pagava, ficava a dormir em estações de comboio. Diminuía as minhas despesas a saltar refeições, por exemplo. Hoje, dou a mim mesmo mais algumas coisas. Ainda assim, recuso viajar com um estilo luxuoso. Eu acho que a suposição de que viajar é caro é um mito, porque não precisa de ser dispendioso. É uma questão de prioridades: se é uma pessoa que quer ter um telemóvel topo de gama, com o dinheiro que sobra dessa compra pode ser mais difícil viajar. Ou então pode ser como eu: compro um telemóvel de quatro em quatro anos e uso-o até que avarie.
Numa era repleta de tecnologia e smartphones, viajar tornou-se mais confortável?
Tornou-se muito mais fácil. Primeiro, é muito fácil encontrar informação sobre os lugares e planear. Caso se tenha o Google Maps, é muito mais fácil viajar de carro, porque se observa o mapa e sabe-se por onde se está a ir. Depois, a tecnologia ajuda muito a construir o sentido de comunidade entre viajantes. É uma das razões pela qual estou em Portugal. É verdade que conheci o João Paulo [organizador do ‘Almoço dos Viajantes’] pessoalmente e não através de uma rede social. No entanto, a comunicação entre viajantes desenvolveu-se muito devido à tecnologia. É mais fácil interagirmos hoje do que há 40 anos. É por isso que admiro muito os nossos antecessores: viajavam nos anos 60 de forma alucinante e num tempo em que era tudo muito mais difícil.
Nas redes sociais circulam muitas frases sobre viagens, a forma como enriquecem a alma. Não poderão correr o perigo de se tornarem clichés?
Mais uma vez, depende do tipo de pessoa que se é. Eu conheço pessoas que se consideram viajantes e na verdade, são apenas pessoas que se movem. Não aprenderam nada ou mudaram alguns traços da sua personalidade durante as viagens. Até posso dar um exemplo. Uma vez estive com uma dessas pessoas, é alguém muito mais velho do que eu e é dos Estados Unidos da América. Num dos ataques terroristas que aconteceram nos últimos tempos, a pessoa disse-me: ‘É um daqueles muçulmanos, outra vez!’, ‘Tenho a certeza que foram eles’ e ‘É o que podemos esperar deles’. Eu fiquei profundamente chocado. Foi aí que me apercebi que aquele homem, apesar de ter viajado por quase todos os países do mundo, não tinha aprendido nada. Mas isto deve-se mais ao tipo de pessoa que ele é. Eu acho que se a pessoa é naturalmente alguém que tem uma mente aberta, viajar vai-lhe acrescentar muito. Aprende-se muito sobre as outras pessoas, como elas experienciam a vida e, em último caso, aprende-se a conhecer os nossos próprios limites. Começamos a aceitar o que podemos ou não fazer e tornamo-nos muito mais tolerantes. Para mim, é um dos grandes benefícios de viajar: vemos a beleza das coisas com outros olhos, porque cada lugar tem alguma coisa para oferecer. Isto é o que enriquece a minha alma. Mas não quero dizer com isto que para ser uma ‘alma rica’, se tenha de ser um viajante. Há uma série de outras coisas para o desenvolvimento pessoal, como ser artista ou ter um hobbie de que se gosta muito. Viajar é uma apenas uma forma, aconteceu que se tornou a minha.
Viajar pode ser aventuroso e até envolver riscos. Toda a gente consegue apreciar?
Eu conheço pessoas que não gostam mesmo nada de viajar. O processo de viajar acaba por cansá-las. Se se viaja muito de avião ou de carro torna-se cansativo, ao fim de algum tempo. Acho que todas as pessoas podem apreciar a atividade de viajar, porque é um caminho tão libertador. Pode-se viajar só para ir para a praia durante duas semanas. Eu não julgo as pessoas que o fazem, porque provavelmente têm uma vida muito stressante e precisam de se libertar da rotina. Portanto, duas semanas na praia e debaixo do sol é o que elas precisam. Ou podem fazer o que eu faço: andar por aí, ver muito e intensamente, e nunca parar. A minha vida é sempre com muito movimento. É cansativa e tenho a certeza que a minha maneira de viajar não é para toda a gente. Não é relaxante, mas tenho algumas viagens que o são. Toda a gente pode viajar, se assim quiser.
Antes de o Harry viajar para algum lugar, costuma pesquisar o que quer ver e visitar?
Agora que visitei todos os países, tenho uma vaga ideia do que existe. Costumo ler o mínimo possível sobre os lugares, pela simples razão de querer ter uma mente aberta. Quero que as primeiras impressões sejam realmente fortes. A minha preparação foca-se mais no tipo de perigos que posso encontrar e nos mapas, a orientação/ordenamento que aquele território tem. Não quero aprender muito sobre a História cultural do local, antes de lá estar. Hoje, estou a voltar aos países, mas a vê-los com muito mais pormenor. Pretendo passar mais tempo em cada um e inevitavelmente quero ler mais e focar-me no que há realmente para conhecer. Por exemplo, em Portugal, fui aos Mosteiros de Alcobaça e da Batalha e ao Convento de Tomar. Obviamente, tem de se ler sobre eles para saber que existem. Caso contrário, como saberia? Acho que estou no meio: não sou o viajante com um guia turístico numa mão, que o lê de uma ponta à outra, mas tenho uma vaga ideia do que existe.
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Portugal está no topo dos países que o Harry mais gostou de visitar.
Pois, mas as pessoas não acreditam nisso. Pensam que estou a dizer, só por dizer.
Deve-se ao síndrome de que ‘os outros países são sempre melhores que os nossos’? É uma visão corrente?
Eu acho que é muito comum nos portugueses. É até uma das razões pela qual eu gosto tanto deste país. Na minha opinião, os portugueses são naturalmente tímidos. Com isto, não quero dizer que são fechados, porque encontrei pessoas muito acolhedoras. No entanto, são tímidos e até auto-depreciativos, quase como se dissessem ‘não somos suficientemente bons’. Já de outros povos europeus, cujo nome não vou pronunciar [risos], não se pode dizer o mesmo. Pensam que são os melhores e por essa razão não são os meus preferidos, embora sejam igualmente ricos na sua cultura. Portugal poderia ter-se mais em consideração. Sempre que venho cá, lembro como Portugal era um grande império. Hoje, muitas partes do mundo falam português, porque tudo começou aqui. Tenho sangue grego, mas a Grécia é um país pequeno, ainda que tenha contribuído muito para a civilização e não tenha ex-colónias para mostrar. Porém, Portugal é muito fascinante. Tem uma série de coisas admiráveis e até as falhas são simpáticas, uma vez que eu consigo relacionar-me e rever-me nelas.
Que tipo de conselhos daria a pessoas que querem ser viajantes profissionais ou viajar durante um ano?
Diria que provavelmente ao viajar irá aprender mais do que com qualquer outra experiência que tenha tido. Os professores da universidade vão odiar-me por dizer isto, mas eu acredito que aprendi muito mais com o que vi, experienciei e falei com as pessoas. Se pudesse dar algum conselho seria para aprenderem o maior número de línguas possível. Não é necessário falar com fluência, mas aprender o suficiente para falar com as pessoas na sua língua-mãe. Isto resulta numa experiência muito mais rica quando se está lá. E também não escutar o que os outros dizem. Se realmente se quer fazer, é ir em frente. Ainda que haja muita resistência à volta, porque os pais e a família querem naturalmente proteger. É o instinto, veem o mundo como um lugar desconhecido e muito perigoso. Mas não é nenhuma destas coisas. Obviamente, usar o senso comum e não ir para uma zona de guerra. E se se viajar quando somos mais jovens, irá definitivamente enriquecer a vida. O perigo é realmente não conseguir parar.