Edgar Pêra é o canivete suíço do cinema português, e ainda consegue ter extensões para outras artes. Cavaleiro teimosamente solitário da nossa cinematografia, individualista de obra multidimensional, Pêra não se encaixa em nenhuma categoria, escola ou capelinha, não pode ser reduzido a um rótulo ou limitado a uma definição rigorosa, submetido a um qualquer alinhamento. Ele é um movimento em si próprio. É ao mesmo tempo alternativo, “contrário” e de vanguarda, está sempre muitos passos à frente de todos os outros mas nunca se esquece que há heranças do passado a estimar, utilizar e manipular.

É um cineasta que dispara em várias direções formais, técnicas e estéticas, abraça múltiplas linguagens e contempla todos os suportes fílmicos, adotando várias “personas” e até uma grafia própria, experimentando com o vídeo, a animação, o multimédia, o digital e o 3D, manipulando, misturando e remisturando, tocando em géneros – o fantástico, a ficção científica – praticamente ignorados ou desprezados em Portugal, bem como o filme-ensaio. Junta visionarismo e tradição, cultura erudita e cultura pop, circula entre o “underground” e o “mainstream”, o marginal e o institucional, e articula cinema e música (os “cine-concertos”), tendo trabalhando para todos os meios em desvairados registos, e estendido a sua atividade à música, ao jornalismo, às artes gráficas, plásticas e performativas. Uma galáxia de interesses cujo “sol” é o cinema.

O nosso “Homem-Kâmara” tem finalmente uma retrospectiva, na Fundação de Serralves. Abriu esta semana e prolonga-se até ao dia 18 de Dezembro, comissariada por António Preto. Vão passar 42 longas e curtas-metragens (algumas das quais só foram vistas em festivais como o DocLisboa ou o Indie), e haverá em paralelo uma exposição documental, um cine-concerto com a participação de Tó Trips, dos Dead Combo, uma “masterclass” e uma mesa-redonda. Serão ainda exibidos, em estreia mundial, os filmes “Ressurreição! Ressurreição! Ressurreição! (work in progress)” e “Delírio em Las Vedras”. Todas as projeções decorrem no auditório da Fundação, menos as dos filmes em 3D, que serão nos cinemas NOS Alameda Shopping. Eis seis escolhas da programação de ‘Edgar Pêra: Uma Retrospectiva’.

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“A Janela” (Maryalva Mix)” (2001)

Lisboa, bairro da Bica. Uma mulher grita, chama um homem, António, há facadas e fado. E corre o fado de António, marialva português, e das suas seis amantes, todas interpretadas por Lúcia Sigalho. Alfacinha e cosmopolita, tradicional e experimental, burlesco e irreal, musical e cacofónico, “práfrentex” e chunga, este é o primeiro filme polifónico de vanguarda bairrista da história do cinema português, e exemplar único. (Manuel João Vieira, Nuno Melo e Miguel Borges, entre outros, também entram). (Domingo, 22h00)

“És a Nossa Fé” (2004)

Um documentário sobre uma final da Taça de Portugal entre um “grande” de Lisboa, o Sporting, e o modesto mas cheio de tradição Leixões, onde Edgar Pêra está menos interessado nas “incidências do jogo”, como agora se diz, do que no espectáculo da massa de adeptos e no gigantesco fenómeno lúdico-emocional que eles proporcionam. Isso transforma “És a Nossa Fé” num documento único sobre o fenómeno do futebol na sua dimensão de cerimónia colectiva intensamente vivida, movida por uma “fé” e uma “mística” profanas. (Dia 17, 22h00, integrado num programa com mais cinco curtas)

“Visões de Madredeus” (2012)

Edgar Pêra andou a filmar os Madredeus ao longo de quase 20 anos, “sempre como amigo do grupo”, e o resultado foi este documentário, que começa nos primeiros ensaios da banda, em 1987, e termina no último concerto da digressão ‘Um Amor Infinito’, realizado em Tóquio, em 2006. São cine-diários de concertos, gravações de discos, imagens de bastidores e de viagens, entre Portugal e o Japão, Espanha e Itália, Inglaterra e Hungria. Recorde-se que foi Pêra que rodou o primeiro teledisco dos Madredeus. (Dia 19, 18h00)

“O Barão” (2011)

Além de “Rio Turvo”, que nunca teve estreia em sala e passou apenas no Indie, Edgar Pêra tem outra fita baseada num conto do escritor Branquinho da Fonseca. É “O Barão”, apresentada como tendo sido refilmada a partir de uma adaptação cinematográfica prévia da mesma obra, em género de terror, rodada em segredo em Portugal durante a II Guerra Mundial por uma americana, mas que ficou incompleta por intervenção da polícia política do regime. Nuno Melo interpreta o vampiresco Barão do título nesta fita “neuro-gótica” que remete, pelo preto e branco e pela atmosfera, para o cinema fantástico dos anos 30 e 40. (Dia 20, 22h00)

“A Cidade de Cassiano” (1991)

Rodado para a exposição ‘Cassiano Branco e o Éden’, numa encomenda da Câmara Municipal de Lisboa, este é um documentário sobre o grande arquiteto modernista Cassiano Branco, que projetou, entre muitos outros edifícios, o Cine-Teatro Éden, o Hotel Vitória, o Coliseu do Porto ou o Grande Hotel do Luso. Praticamente sem narração, apenas com música e som, Pêra foge às convenções deste tipo de filme de encomenda oficial, e dispara em busca da obra de Cassiano, com uma câmara que colhe inspiração visual nas suas formas, linhas e ondulações. (Dia 22, 22h00, integrado num programa com mais três curtas)

“Lisbon Revisited” (2014)

Depois de “Cinesapiens”, encomendado por Guimarães Capital Europeia da Cultura e incluído no programa “3x3D”, de que fazem também parte filmes de Jean-Luc Godard e Peter Greenaway, Edgar Pêra recorreu pela segunda vez ao 3D nesta fita, de braço dado com a manipulação de imagens e de sons que são duas constantes da sua obra. Em “Lisbon Revisited”, a capital é uma cidade transfigurada, como que saída de um sonho, uma fantasmagoria ou uma visão, ao som de poemas de Fernando Pessoa e de alguns dos seus heterónimos e semi-heterónimos, escritos em português, inglês e francês. (Dia 16 de Dezembro, 22.00)