Depois de um homem ter irrompido pelo mercado de Natal em Breitscheidplatz, uma praça em Berlim, ao volante de um camião de mercadorias e ter matado 12 pessoas (ataque já reivindicado pelo estado islâmico), duas reações levantaram-se.
A primeira, mais lenta, coube às autoridades e à justiça. Logo numa fase inicial, depois de rumores de haver um suspeito em fuga, soube-se que este foi detido pela polícia e submetido a um interrogatório. Não tardou que se soubesse que este é um requerente de asilo proveniente do Paquistão e que deu entrada na Alemanha a 31 de dezembro de 2015. Horas depois, saiu a informação de que este negava qualquer responsabilidade na morte daquelas 12 pessoas — sendo que dos 48 feridos, há ainda 18 que estão em estado muito grave. À hora a que escrevemos este texto, a última informação é a de que, segundo uma fonte policial disse a vários jornais alemães, o detido não deverá ser o autor do ataque. “Nós temos o homem errado”, disse essa mesma fonte, adiantando que “o verdadeiro culpado está armado” e em fuga. Por isso, a polícia aconselha “cautela”.
A segunda, bem mais rápida, coube à política. A primeira voz a falar foi a da própria Angela Merkel, logo ao início da manhã. “Ainda não temos certezas, mas temos de assumir que se tratou de um ataque terrorista”, sublinhou. Sobre a possibilidade de o crime ter sido cometido por um requerente de asilo (nesta altura, o refugiado paquistanês já tinha sido detido mas ainda não havia informação de ele negar a autoria do ataque), a chanceler germânica disse: “Será particularmente repugnante se se confirmar que este ato foi cometido por uma pessoa que pediu proteção e asilo à Alemanha. E ainda é mais difícil quando sabemos que há inúmeros alemães que se empenham diariamente para ajudar os requerentes de asilo”.
“Os mortos de Merkel”
Angela Merkel é chanceler da Alemanha desde 2005 e, por isso mesmo, um símbolo de estabilidade governativa ímpar na União Europeia — é preciso ir até às fronteiras daquele bloco, como é o caso da Turquia (Erdoğan governa desde 2003) ou da Rússia (Putin foi inicialmente eleito em 2000) para encontrar líderes que governam há mais tempo. Com mais de 11 anos no poder, a chanceler alemã já anunciou a sua candidatura às eleições federais, que deverão acontecer entre agosto e outubro de 2017. Por tudo isto, era a reação de Angela Merkel, que ao longo destes anos mereceu a alcunha de mutti (algo como mamã) entre os seus apoiantes, que mais se aguardava na Alemanha.
Mas houve uma outra reação que era quase tão antecipada como a de Angela Merkel e que deixou clara a diferença de velocidades entre a justiça e a política. Trata-se da líder do partido de direita radical (também muitas vezes descrito como populista e xenófoba) Alternativa para a Alemanha (AfD), Frauke Petry. Num comunicado, apontou diretamente o dedo a Angela Merkel: “A Alemanha já não é segura. É obrigação da chanceler dizê-lo. Mas como ela não o fará, então digo-o eu”. Sobre as causas do incidente, foi clara a referir a crise dos refugiados e a abertura das fronteiras alemãs no verão de 2015. “O ambiente onde este atos nascem foi negligente e sistematicamente importado ao longo do último ano e meio.” Outro membro destacado da AfD, o eurodeputado Marcus Pretzell (que falou ao Observador depois da onda de casos de assédio sexual em Colónia na noite de passagem de ano de 2015), disse que as 12 vítimas da Breitscheidplatz são “os mortos de Merkel”.
O abalroamento de várias pessoas naquela praça no centro de Berlim — batizada em honra de Rudolf Breitscheid, político social-democrata que se opôs a Hitler nos anos 1930 e que morreu num campo de concentração em 1944 — começou por ser tomado como um acidente. Porém, à medida que surgiam vários relatos que diziam que o camião não abrandou nem desviou a sua trajetória, tudo passou a um incidente. Com a memória no que se passou em Nice a 14 de julho, já na manhã de dezembro, a saiu da boca de Angela Merkel a expressão que muitos alemães temiam, e que tantos outros tomavam com um desfecho inevitável: “Ataque terrorista”.
Merkel disse que crimes de refugiados eram “incidentes terríveis mas isolados”
A noite de 19 de dezembro foi a noite mais negra na História recente de um país que, ao contrário de alguns dos seus maiores parceiros estratégicos, tem passado ao lado de vários atentados terroristas. Ainda assim, as notícias de crimes cometidos por refugiados e requerentes de asilo estão bem presentes na memória de muitos alemães. O caso mais crítico passou-se durante a noite de Ano Novo, onde um total de 1200 mulheres terão sido alvo de agressões sexuais — com destaque para o caso particular de Colónia. Em julho, um refugiado sírio de 21 anos matou com um machado uma mulher grávida em Reutlingen. Nesse mesmo mês, um alemão de origem iraniana a quem tinham sido diagnosticados problemas psiquiátricos matou oito pessoas e depois suicidou-se num centro comercial em Munique. Em dezembro, ainda antes de Breitscheidplatz, um requerente de asilo afegão de 17 anos violou e matou uma mulher dois anos mais velha em Freiburg; e um iraquiano de 31 anos foi acusado de violar duas estudantes chinesas em Bochum.
Em relação a este dois últimos casos, Angela Merkel disse que eles eram “incidentes terríveis mas isolados” e pediu que eles fossem alvo de “sentenças duras”, reiterando a sua confiança na “resposta do Estado de direito da Alemanha”. E rejeitou a noção de que a entrada de refugiados na Alemanha esteja por trás de um aumento do crime: “Olhámos de perto para a taxa criminal entre refugiados e as conclusões são mistas. Essa é a resposta correta: é preciso diferenciar”. “O facto de que algumas pessoas queiram explorar isso é algo a que nos temos de opor e da qual nos devemos defender”, disse, em relação à oposição.
Se é verdade que a grande parte das críticas à sua política de refugiados partem da AfD, também não pode ser ignorada as várias tomadas de posição dos democratas-cristãos da Baviera, da CSU, que representam a CDU naquela região. O líder da CSU, Horst Seehofer, disse na semana passada que o seu partido se “recusa” a fazer parte de um Governo que não imponha um limite de 200 mil refugiados permitidos a entrar por ano na Alemanha. “Queremos assegurar o povo de que nós seremos parte de um Governo que cumpre as suas promessas”, disse.
Embora mais contido, o aliado de Angela Merkel no Governo, o vice-chanceler e líder do SPD, Sigmar Gabriel, acusou em agosto a líder da CDU de ter “subestimado o desafio” da crise dos refugiados ao não colocar um limite ao número de requerentes de asilo permitidos a entrar no país.
Relatório diz que crime aumentou, mas com proporção à população
Ainda assim, a propósito de um relatório da BKA, a judiciária da Alemanha, sobre o crime e os refugiados lançado em novembro, o ministro da Administração Interna e braço direito de Angela Merkel, Thomas de Maizière, negou a ideia de haver uma maior predisposição para o crime entre refugiados. Ainda assim, não ignorou a subida do número de crimes praticados na Alemanha — em junho, outro relatório do BKA falava de 69 mil crimes praticados por refugiados. “Está a tornar-se claro de que na base do aumento do número absoluto de crimes está o facto de ter havido um aumento de pessoas a viverem aqui devido à chegada de refugiados”, disse. Sobre os requerentes de asilo, disse que estes “não vêm para aqui com a intenção de cometerem crimes”. “Eles vêm para a Alemanha para encontrarem proteção e paz.”
O relatório dizia respeito a crimes praticados por refugiados e requerentes de asilo entre os meses de janeiro e setembro de 2015. 67% dos crimes praticados por refugiados eram roubos, furtos, posse ou produção de documentos falsos. Apenas 1% dos crimes eram de cariz sexual e só 0,1% eram homicídios.
Seja como for, em outubro deste ano uma sondagem da ARD-DeutschlandTrend indicava que 51% dos alemães estavam “preocupados” com a entrada de refugiados no seu país, contra 47% que não manifestaram qualquer preocupação. Os números de “preocupados” subiam aos 59% de preocupados nos territórios que pertenciam à antiga Alemanha de Leste, ao passo que na parte ocidental do país foi de 48%.
Com estes números veio também uma consequência quase automática: a popularidade de Angela Merkel atingiu o nível mais baixo dos últimos cinco anos em setembro, batendo nos 45%. Nessa altura, quando a chanceler ainda não tinha anunciado a sua candidatura às eleições de 2017, 51% dos alemães diziam que ela não se deveria candidatar a um quarto mandato.
Em termos concretos, Angela Merkel e a CDU tiveram mais do que um revés em eleições regionais em 2016. Em março, naquelas que foram as primeiras eleições desde a crise dos refugiados do verão de 2015, a CDU perdeu terreno em três regiões (registando entre menos 2,8% e menos 12%) e viu grande parte dos votos a irem para a AfD, que ao disputar as suas primeiras regionais conseguiu resultados entre os 12,6% e os 24,2%. Mais tarde, em setembro, a AfD teve 20,8% dos votos na região de Mecklenburg-Vorpommern e relegou a CDU para terceiro lugar com 19% — o SPD repetiu o primeiro lugar com 30,6%.
Conseguirá Merkel, a pragmática, dar a volta por cima?
Ainda assim, em outubro, os números da popularidade de Angela Merkel subiram para 54% — um número positivo embora distante dos 75% de janeiro de 2014. E no início de dezembro as sondagens colocavam a CDU em primeiro lugar com 32%-35%, seguindo-se o SPD com 22%-22,5% e só depois da AfD com 13%-14%.
Embora estejam longe dos 41,5% obtidos pela CDU em 2013 (que acabou por ter de se coligar com o SPD, que chegou aos 25,7%, para formar maioria no Bundestag), estes números continuam a ser bons indicadores para uma continuação da atual solução governativa entre os conservadores e os socialistas alemães — com Angela Merkel à cabeça, claro. É precisamente por não ter nada que se assemelhe a isto nas sondagens que François Hollande é o primeiro Presidente francês em mais de 60 anos, desde René Coty, a não concorrer a um segundo mandato. Mas os efeitos de um atentado desta dimensão, aliados ao desgaste da opinião pública alemã perante a entrada de refugiados em solo germânico, são difíceis de prever. Mesmo para Angela Merkel.
No entanto, nos seus mais de 11 anos no poder Angela Merkel tem dado provas de ser uma política experiente e pragmática, com um apurado sentido de sobrevivência. Isto é, dito por outras palavras, a chanceler alemã tem por hábito adaptar aquilo que diz e apresenta aos seus eleitores consoante o momento. E isto já era algo que Angela Merkel estava a tratar de colocar em marcha no início de dezembro.
No dia 6, depois de ter sido nomeada pela CDU para ser a candidata do partido às eleições de 2017 (com 89,5% de aprovação dos militantes, o número mais baixo que teve desde 2004, ano em que teve 88,4%), Angela Merkel fez um discurso onde esteve perto de fazer uma completa inversão de marcha no rumo que dera à política alemã de acolhimento de refugiados. Uma das chaves desse discurso foi a defesa de uma moção a favor da proibição do uso da burqa, o véu islâmico completo, ou do niqab, onde só os olhos são expostos. “O véu completo não é adequado e deve ser banido onde quer que isso seja legalmente possível”, disse, ecoando a política adotada em França durante a presidência de Nicolas Sarkozy.
“A nossa lei prevalece sobre códigos de honra, regras tribais ou familiares, sobre a lei da sharia e isso tem de ser dito de forma clara”, disse. “Nós mostramos as nossas caras.”
Mas não foi só de burqas e niqabs que se fez o discurso da chanceler. Num discurso que esteve a anos-luz daquilo que disse na mensagem de Ano Novo no último dia de 2015, Angela Merkel falou da crise de refugiados e disse que “uma situação como a do verão de 2015 não deve, não pode, nem será repetida”.
13 dias mais tarde, a Willkommenskultur de Angela Merkel viria a ser posta em causa como nunca antes — mesmo que não seja ainda conhecida a identidade do autor do ataque terrorista na Breitscheidplatz, em Berlim. “Hoje não é dia para falar de consequências”, disse o ministro da Administração Interna esta terça-feira. Seja como for, Angela Merkel já estará a pensar nelas.