Oito espreguiçadeiras voltadas para o mar num belo dia de praia em Nova Inglaterra. Ali se deitam oito personagens intrigantes. Desde logo, Daniel e Benjamin, que se percebe terem tido uma relação amorosa no passado e entretanto casaram com mulheres. Porque será que já não estão juntos? O que os levou à união com mulheres que eles não respeitam? A resposta a estas perguntas é bem capaz de ser uma das chaves para se compreender o espetáculo.
“A homossexualidade é um tema de transversal nesta peça, mas um tema de superfície”, analisou o encenador Ricardo Neves-Neves, em conversa com o Observador, depois de um ensaio. “Também não é um tema secundário, mas acho que depois de vermos a peça o que fica é uma história de incompatibilidade entre pessoas, incompatibilidade amorosa e de pele. Ora, isso não acontece apenas entre homossexuais, pode acontecer com todas as pessoas.”
“Encontrar o Sol”, que se estreia sexta-feira no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, é um texto escrito em 1983 por Edward Albee (1928-2016), dramaturgo americano que se tornou célebre com “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”. Trata-se de uma produção do Teatro do Eléctrico, coletivo lisboeta formado em 2008. É a primeira representação da peça em Portugal.
“Se tivesse de pôr uma etiqueta no texto, diria que é uma tragicomédia”, classificou Ricardo Neves-Neves, de 31 anos, reconhecendo tratar-se de uma linguagem “um pouco diferente” daquilo a que está habituado.
“Enceno mais peças com vertente musical forte, trabalho muito a farsa, a comédia, o boneco. Nunca trabalhei realismo enquanto encenador e nunca escrevi realismo, e esta peça talvez seja realismo”, disse. “Mas também acho que o Albee dá espaço para construirmos uma realidade paralela ao realismo. De certa maneira o surrealismo ou o absurdo cabem nesta peça.”
O texto foi traduzido por João Paulo Esteves da Silva de propósito para esta ocasião. A linguagem é bastante atual, mesmo se o original não tem um tempo histórico definido.
“Peço muito do íntimo dos atores para a construção da personagem. Não tem nada a ver com teatro pós-dramático, nem com o método da ‘personagem intermédia’. O que procuro são as características das personagens e as características dos atores, uma mistura das duas coisas. É por isso que aqui estamos a viver o nosso tempo, a ver as características pessoais deles e a receber uma linguagem atual”, justificou Ricardo Neves-Neves. “Não quero fazer a construção totalmente fora do corpo dos atores, isso depois leva a que eles procurem terapia no fim de uma temporada”, ironizou.
Daniel (Luís Gaspar) reencontra Benjamin (Romeu Costa) na praia e o amor que permanece entre eles é logo declarado, sem que se entenda o que os afastou. A mulher de Daniel, Cordelia (Tânia Alves), está ao corrente do passado do marido e diz que lida bem com isso. A mulher de Benjamin, Abigail (Rita Cruz), vive uma crise existencial e responsabiliza-o: “Tu com os teus olhares de esguelha, as cartas que não me deixas ler, os telefonemas suspeitos, as desculpas esfarrapadas para chegares tarde a casa.”
Interpretado literalmente, Edward Albee terá querido transmitir uma luta interior quanto à orientação sexual, mas também um mal-estar que atravessa identidades, classes e gerações, o que está bem presente em todas as outras personagens (interpretadas por Cucha Carvalheiro, Custódia Gallego, Marques D’Arede e o estreante Tadeu Faustino).
O velho tema da vida dupla e atormentada de alguns homossexuais, por sua vez ligada à falta de aceitação social e pessoal, paira a todo tempo. Mas Ricardo Neves-Neves tem uma interpretação mais universal.
“Julgo que o tema profundo do texto, hoje, em 2017, tem mais a ver com a questão do amor e da solidão”, comentou o encenador. “Em 1983, quando foi escrito, estávamos a sair do amor livre dos anos 60, das liberdades a rebentar em São Francisco nos anos 70, e tínhamos a questão da sida a surgir, muito associada à homossexualidade. Nos anos 80, a homossexualidade estava no primeiro plano das temáticas sociais. Falar sobre espetáculo em 1983 é diferente de falar hoje, em 2017, na Europa, num centro urbano, em que alguém preocupado com dois homens ou duas mulheres que se beijam na rua ou dão as mãos é alguém sem preocupações na vida, parece-me. Sei que há muita gente incomodada com o assunto, é uma coisa que ainda causa comichão, sei que isso existe, claro, mas o contexto é muito diferente de há 34 anos.”
No entender do criador, estamos perante uma “tragédia moderna” e não um “simples drama”. “Acho que temos aqui as características da tragédia grega, porque 90% da peça é sobre o passado daquelas personagens e a última cena projeta-as num futuro que desconhecemos”, explicou. “Tudo o que é falado e discutido resulta do passado das personagens. É uma característica da tragédia grega clássica: as questões de relevo passam-se sempre fora de cena, o espectador nunca as vê.”
O encenador acrescentou que “Encontrar o Sol” representa o encerrar de um ciclo de quatro anos que o Teatro do Eléctrico dedicou às questões da “igualdade de género”, em consonância com a temática favorecida pela Direção-Geral das Artes nos concursos de apoio à criação em 2013.
O ciclo consistiu em leituras encenadas no espaço da associação de minorias sexuais ILGA Portugal, na Baixa lisboeta, incluindo um texto de 1913 de Vitoriano Braga (1888-1940), “Octávio”, considerada a primeira obra dramática em Portugal a abordar a homossexualidade.
A ligação à ILGA está também presente na nova criação através de um coro criado pela associação e que terá nove elementos na primeira fila do São Luiz para fazerem o acompanhamento musical em algumas cenas.
A peça pode ser vista até 25 de Fevereiro. No dia 3 de Março terá uma apresentação única no Theatro Circo de Braga.