O espanto de Nick Willing, filho de Paula Rego e realizador de “Paula Rego, Histórias & Segredos”, perante o que a mãe lhe conta sobre a sua vida, e a da família, é o mesmo espanto do espectador. Foi preciso a pintora fazer 80 anos para deixar de estar envolvida numa certa aura de mistério perante os filhos (Willing tem duas irmãs mais velhas, Caroline e Victoria), e falar com uma franqueza desarmante – e por vezes incómoda, quando não mesmo chocante para alguns — para a câmara de Nick. O que distingue este documentário de qualquer outro sobre a artista (e do filme rotineiro sobre artistas plásticos) é ser feito dentro da família, é o ponto de vista. É ser um filho ao mesmo tempo realizador, interlocutor e primeiro destinatário, que filma a mãe talentosa e célebre a revelar-lhe coisas que de outro modo não viriam a público. É falar tanto da intimidade como da obra, e iluminar a maneira como elas são indissociáveis. Se o filme tivesse um subtítulo alternativo, seria: “Tudo Sobre a Minha Mãe”.

[Veja o “trailer” de “Paula Rego, Histórias e Segredos”:]

Paula Rego conta tudo ao filho. Como, nascida numa família desafogada e de pais com interesses artísticos, se dava muito melhor com o pai do que com a mãe, e como foi o avô de Nick que incentivou a filha a deixar o Portugal do antigo regime, que detestava e não julgava salubre para as mulheres, e a ir para Inglaterra, estudar na Slade School; a forma insólita e crua como conheceu o marido, Victor (também pintor, e muito bom), na Londres dos anos 50 (no mundo politicamente correcto de hoje, poderia dar um caso de polícia) e o seu complicado casamento; os casos extraconjugais que ambos tiveram, os abortos que fez; os anos de dificuldades, que levaram à venda da paradisíaca quinta familiar da Ericeira; a longa doença e a morte de Victor, e como esta marcou a sua criatividade; o reconhecimento tardio do seu talento; a depressão de que sofre desde nova e que afectou a vida familiar e a relação com os filhos.

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[Veja a artista no seu estúdio em Dezembro de 2014:]

E também a vocação narrativa e a dimensão fantástica da sua pintura, com quadros que evocam, fixam e contam, de forma semi-codificada e canalizada pelo subconsciente, histórias pessoais, biográficas (muitas delas baseadas em memória de infância), que podem ser profundamente dolorosas (a série sobre a depressão da pintora esteve guardada durante anos e só há pouco foi exposta em Londres), mascaradas de histórias conhecidas (um conto de fadas ou tradicional, um clássico literário) e cumprem uma função que se diria catárctica e de auto-terapia.

“A minha mãe é como uma estrela de cinema cheia de glamour”

O documentário dá-nos ainda acesso ao estúdio londrino da pintora, onde a vemos trabalhar e descobrimos os adereços e os bonecos que Paula Rego faz com a sua modelo e assistente informal, Lila Nunes, ou saem das mãos das netas e de um dos genros, também artista. E está pontuado pelos “home movies” feitos por Nick Willing e pelo avô, que levaram o neto a ser cineasta.

[Paula Rego e o crítico e historiador de arte Robert Hughes:]

Não é preciso simpatizarmos, concordarmos ou identificarmo-nos com as escolhas e o estilo de vida, as atitudes sociais ou as opiniões políticas de Paula Rego para gostarmos da sua pintura, reconhecermos o seu enorme, perturbador e singularíssimo talento, a forma particular como se expressa e a maneira como ela está total e enfaticamente fora de qualquer movimento ou escola artística. Nem para compreendermos o valor documental, cultural e afectivo de um documentário como “Paula Rego, Histórias & Segredos”, que aproximou uma mãe e um filho, torna mais clara e perceptível, na estética, no discurso e nos significados, uma obra ao seu público e é, sobretudo, um gesto de amor filial em forma de cinema.