“Só de saber que esse gajo apoia os refudiados (sic), vou perder o amor ao valor da chamada telefónica e vou votar noutro país!”, escreveu um comentador das redes sociais a propósito das declarações de Salvador Sobral na sua conferência de imprensa após a passagem à final da Eurovisão.

Ora, este senhor zangado enganou-se em duas questões: primeiro, terá sempre de votar noutro país pois não é permitido votar no seu próprio. Depois, há ali uma gralha na palavra “refugiados” – ai esperem, era sarcasmo. Lol.

Foi interessante observar as reviravoltas da indignação desde a primeira actuação de Salvador Sobral no Festival da Canção até à sua aclamação internacional e apuramento para a final.

Crónica. Eurovisão: há mais de 60 anos a salvar-nos

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na terça-feira à noite, imediatamente a seguir à primeira semifinal da Eurovisão, procurei nas caixas de comentários pela reacção daqueles que antes tinham vaticinado a vergonha nacional em Kiev e nada encontrei. Havia uma celebração quase unânime e também quem colocasse a questão que eu própria colocara a mim mesma: onde andam agora os detratores do Salvador?

Mas não tardaram a aparecer. Simplesmente, perante a celebração de uma maioria, passaram a noite a fermentar até se tornarem num picle de indignação. Estavam só à espera de um pretexto para voltar a pegar nos seus archotes. E Salvador não tardou a dar-lhes a deixa: “Ajudem os refugiados”, disse ele. Finalmente o autor do comentário que abre este texto (e outros como ele) pôde voltar a respirar fundo. Na mesma publicação de Facebook, ele teve ainda o prazer de mandar fãs de Salvador Sobral para sítios menos agradáveis ou especular sobre a actividade profissional das suas mães. Depois afagou o seu cão, beijou a mulher e levou a filha à escola.

Talvez não seja uma coincidência que os temas “Salvador Sobral” e “refugiados” unam os comentadores indignados: ambos provocam nessas pessoas o medo da diferença. E é o medo da diferença que, entre outras consequências muito mais trágicas, faz com que todas as canções da Eurovisão sejam iguais. Menos a de Salvador Sobral.

Crónica. Salvador ou a trágica sensação de invencibilidade

Desde os tempos de escola, quando as redes sociais eram as carteiras da sala de aula, que me lembro da irritação provocada pela diferença. “Porque é que te vestes de preto?”, perguntavam-me entre a estranheza e o nojo. O que poderia levar alguém a não querer pertencer? Pior ainda: como te atreves tu? Deves ter a mania. Eu não tinha a mania – em retrospectiva psicanalítica, apenas me limitei a transformar o medo de não ser aceite na coragem de ser um bocadinho diferente. Mas só um bocadinho porque, na verdade, era igual a todas as pessoas que se vestiam de preto. E estava bem assim.

O Salvador, que ainda há pouco tempo lançou um disco, tem muito talento e mérito, mas não seria um fenómeno de popularidade se não tivesse aparecido vestido de preto por entre as convenções tradicionalmente histriónicas do Festival. Mas ele ganha à Ana adolescente porque nunca teve medo de não ser aceite. Está, na verdade, a borrifar-se para isso.

Fenómenos de popularidade pela diferença como o Salvador fazem-me recuperar a fé na humanidade, perdida por uma leitura demasiado exaustiva das caixas de comentários. É que as redes sociais fazem ecoar bastante mais a estupidez humana do que as suas qualidades – mas, em momentos como este, lá se faz lembrar uma grande multidão que não tem necessariamente de gostar da mesma canção, mas que ao menos não se sinta enraivecida pela vitória comovente, quase acidental, de um desalinhado.

Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3