Estávamos no ano 1956 depois de Jesus Cristo. Toda a Gália estava ocupada. Quer dizer, toda? Não! Uma pequena aldeia etc, etc, etc. É provável que o leitor reconheça a inspiração de abertura deste artigo. Durante muito tempo, Astérix, o gaulês, ajudou a construir uma identidade comum entre leitores, partindo das idiossincrasias de cada um dos povos europeus. Dos gauleses aos romanos, passando por bretões, hispanos, belgas e godos, tivemos acesso a muito do que compõe o nosso continente. As melhores taras e manias. Os tiques gastronómicos. A propensão dos lusitanos para a poesia, como nos assegurou O Domínio dos Deuses. Astérix acabou mesmo por viajar até ao Médio Oriente e ao Novo Mundo, à semelhança do que aconteceu com o Festival Eurovisão da Canção. E é aí que quero chegar.

O herói gaulês começou a dar cartas em 1959, mas, três anos antes, em 1956, estreava-se o Festival. Ou seja, a canção ligeira em modo competição entre povos europeus é anterior não só a Panoramix como também ao Tratado de Roma, que seria assinado apenas no ano seguinte. O que significa que as lantejoulas, os hinos melosos e a poesia nas margens do gosto duvidoso foram pioneiros na tentativa de criar laços entre gente que insiste em liquidar-se em massa de tantos em tantos anos. A I e a II Guerras Mundiais dispensam apresentações em termos de mortandade, mas sobram exemplos daquilo que os europeus gostam de fazer uns aos outros com demasiada regularidade. Basta lembrar a Guerra dos 30 anos, a guerra civil na Rússia, com intervenção de outras potências europeias ou as guerras napoleónicas, que puseram a corte portuguesa a dar às de vila Diogo, para percebermos a importância das distracções e das competições inofensivas entre nações. Neste capítulo enquadram-se os Jogos sem Fronteiras, que só apareceriam nos anos 60 para marcar com piscinas e fatos gigantes de látex a imaginação de gerações de crianças.

Salvador, tão natural como a sua sede: não há maneira de perder isto

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A verdade é que o Festival da Eurovisão, organizado pela European Broadcast Union (EBU), desempenhou então um papel de União Europeia avant la lettre, com boa parte dos mesmos defeitos e qualidades. O espírito de concórdia que tem mantido a Europa em paz nos últimos 70 anos – se ignorarmos aquele pequeno detalhe da Guerra dos Balcãs – começou então a ser construído não pelo senhor Dijsselbloem mas sim por sete países que estrearam o certame. França, RFA, Luxemburgo, Bélgica, Suíça, Holanda e Itália levaram canções a concurso na cidade de Lugano em Maio de 1956. Trata-se sensivelmente do mesmo grupo que iria protagonizar o Tratado de Roma, com excepção dos helvécios que gostam mais de cantar do que de assinar acordos.

Por razões administrativas, Reino Unido, Áustria e Dinamarca, também eles membros de pleno direito da EBU, foram impedidos de participar. Começava assim a asfixia burocrática sobre os povos, muitos anos antes da normalização do pepino e do Tratado Orçamental. Na altura, venceu a equipa da casa, a Suíça, com uma das duas canções que cada país podia apresentar, depois de uma votação também ela polémica. Por alguma razão, o júri do Luxemburgo não pôde estar presente de forma a exercer o seu voto, que se fez de modo secreto, e o júri suíço acabou por tomar o lugar dos luxemburgueses. Coincidência ou não, houve vitória da Confederação Helvética.

Eurovisão. Um festival que junta música, política e guerra

Desde há muito que as instituições europeias têm alguma dificuldade em lidar com a transparência democrática. Esse modelo de dupla representação musical foi rapidamente abandonado e o sistema de voto foi alterado de forma profunda. Passou a haver um painel com votações, os júris de cada país deixaram de poder votar no seu próprio concorrente e só pode haver uma canção por território. Um pouco à semelhança do que se passa com o Conselho Europeu ou na Comissão, até na forma como há alguns países que podem (cantam) mais do que outros. Hoje, o público do festival também vota, o que veio revolucionar o método de apuramento dos vencedores. E tratando-se do produto televisivo com mais audiência do mundo, a seguir aos grandes eventos desportivos, digamos que a opiniões dos telespectadores será mesmo importante.

Desde 1956, a abrangência do Festival da Eurovisão aumentou exponencialmente – sobretudo desde a queda do Bloco de Leste – e depois de Portugal ter aderido em 1964 (estreia que não podemos revisitar porque o arquivo desse ano ardeu num incêndio) fomos assistindo a uma espécie de alargamento permanente. Hoje, há dezenas de países a concurso, incluindo a Austrália, convidada a participar desde 2015, mas a carga política do Festival continua em alta.

Já muito foi escrito sobre as implicações geopolíticas da edição deste ano, que tem lugar na Ucrânia, e o que é facto é que também existem detalhes vincados da indústria do entretenimento nisto tudo. Há heróis improváveis, como o nosso menino Salvador, e há vilões absolutos como a russa Julia Samoilova, que foi impedida de participar. Foi apresentada como o rosto do mal numa Europa que continua em busca da melhor afinação. Mas deixemo-nos de políticas. Amar pelos dois, pelos 27, pela Europa, é preciso.

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante.