Filipe Melo estava a ter um “dia muito chato” quando recebeu uma chamada inesperada. Do outro lado, Filipe Raposo, convidava-o para um concerto a dois. “Fiquei intrigado. ‘Wow! O Filipe Raposo quer tocar comigo!’ Fiquei mesmo contente, emocionado e honrado”, contou ao Observador. “Disse imediatamente que era uma coisa que eu faria com empenho e com coração.”

O convite apanhou-o de surpresa porque, apesar de muitas vezes ocuparem o mesmo lugar em diferentes grupos como pianistas, orquestradores ou arranjadores, Filipe Melo e Filipe Raposo nunca tiveram oportunidade de partilhar o mesmo palco. Talvez porque, apesar de haver uma boa tradição de pianistas em Portugal, não é assim tão comum ver dois pianos no mesmo concerto. “A sonoridade de um concerto a dois pianos é muito particular, muito fascinante, e não é tão comum quanto isso”, frisou.

Mas isso não os impediu de criarem um espetáculo onde houvesse espaço para os dois. “Dois Filipes, Dois pianos” acontece no dia 2 de junho, sexta-feira, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. O objetivo é quebrar barreiras, preconceitos, misturando diferentes géneros musicais num só espetáculo, mas também confundir ainda mais o público. “Há muita gente que nos confunde. Muitas vezes confundem o Filipe comigo, e confundem-me com o Filipe. O que estou a dizer já é confuso! Então, decidimos confundir ainda mais as pessoas e juntar-nos num concerto.”

A oportunidade surgiu depois de um convite dirigido por Aida Tavares, diretora artística do São Luiz, a Filipe Raposo. Mas a ideia já era antiga.

“Já somos colegas — ou já temos consciência da existência um do outro — há algum tempo. Curiosamente, nunca participámos no mesmo projeto, talvez por deficiência logística. Normalmente não existem dois pianos e foi uma coisa que foi ficando a amadurecer”, contou Filipe Raposo.

“Juntaram-se algumas sinergias, a questão do convite da Aida Tavares, e de repente era possível realizar este concerto com dois pianos, numa sala maravilhosa que é a do Teatro São Luiz. É uma das melhores salas que temos em Lisboa, no país. Uma sala do mundo.”

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(HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

Os ensaios começaram em janeiro deste ano, mas ganharam um ritmo maior em maio. Os dois pianistas têm praticado no Atelier Fernando Rosado, na Cruz Quebrada, e foi aí que os fomos encontrar, cada um em seu piano (e às vezes no mesmo). Sentados em frente um do outro, iam tocando de olhos nas pautas, nas teclas, e, por vezes, de olhos um no outro — como se de uma conversa se tratasse. Filipe Melo garante que “tem sido uma descoberta incrível ouvir o som de outro pianista” e “ver como o Filipe interpreta determinadas coisas — aqui, à minha frente”. “Tocamos com outras pessoas, mas normalmente não temos outro pianista.” E no concerto? Como será? Será “um encontro de dois músicos que são diferentes e que acabaram por encontrar um território comum”.

Do “pai de todos os músicos” ao King Kong

Para o espetáculo do São Luiz, os dois Filipes prepararam uma seleção vasta de temas, que vai desde a música clássica ao rock, passando pelo jazz e pela música portuguesa. Há peças de Bach, mas também uma música de Sérgio Godinho, com quem têm trabalhado de perto e por quem nutrem uma admiração muito especial. Sempre com alguma improvisação à mistura.

Alguns dos temas foram sugeridos por Filipe Raposo, outros por Filipe Melo. Há músicas originais, mas também canções que fazem parte da “memória emocional, afetiva” dos dois músicos. “Temos também os baluartes do piano. Bach tem de estar, é o pai de todos os músicos, como se costuma dizer na gíria musical. Mas temos também referências jazzísticas, que fazem parte do nosso processo académico, e até referências nacionais. Isso foi uma questão que foi importante discutir — como trazer também as nossas referências, pessoas com quem tenhamos tocado e que são referências incontornáveis da música nacional“, esclareceu Raposo.

Por esse motivo, não podia faltar Sérgio Godinho. Há muito que Filipe Raposo trabalha com ele, e Filipe Melo está vai participar no próximo disco. Uma colaboração que admite ser “muito ténue” quando comparada com o que o colega tem feito. No ano passado, Raposo juntou-se a Godinho para uma série de concertos. “Estar ao lado daquele gigante, monstro! Estar em duo com o Sérgio Godinho é como estar em duo com o King Kong, o Godzilla!”, brincou Melo.

“A classe artística sofreu imenso com este período económico muito difícil e este poema é um poema de luta e de força. Acho que faz todo o sentido estar presente como corredor de fundo deste processo que é sobreviver em Portugal sendo artista.”

O tema escolhido para a homenagem ao “King Kong” português foi “Que Força É Essa”. “É um tema que conheci pela primeira vez pela voz do José Mário Branco e, mais tarde, é que percebi: ‘Espera lá! Este tema não é do Zé Mário, é do Sérgio Godinho!’ O poema é extraordinário”, disse Filipe Raposo. “De certa forma, também é uma espécie de corolário desta travessia do deserto desde o início da crise. Falo em termos gerais, mas também em termos artísticos. A classe artística sofreu imenso com este período económico muito difícil e este poema é um poema de luta e de força. Acho que faz todo o sentido estar presente como corredor de fundo deste processo que é sobreviver em Portugal sendo artista.”

(HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

A diversidade do alinhamento era “inevitável”. “Tivemos uma educação musical, uma formação profissional, muito variada. Tocámos com pessoas muito diferentes por isso é natural que quanto temos a liberdade de escolher o nosso próprio reportório que vamos buscar um bocadinho de cada coisa que nos encanta“, explicou Melo. “Acho que eliminar esse tipo de preconceito é um ótimo princípio para uma pessoa começar a gostar mais de música até.”

“Tivemos uma educação musical, uma formação profissional, muito variada. Tocámos com pessoas muito diferentes por isso é natural que quanto temos a liberdade de escolher o nosso próprio reportório que vamos buscar um bocadinho de cada coisa que nos encanta.”

“A diferença não é um problema. A diferença é bem vinda”

De um modo geral, as músicas escolhidas para o repertório do concerto do São Luiz são reflexo do percurso e dos gostos dos dois músicos, que têm procurado fugir ao conservadorismo das academias. Tanto um como outro, quando eram estudantes, sentiram na pele “uma espécie de bullying da parte das direções”. “Quando tocava as minhas improvisações, era frequente a direção abrir a porta da sala onde eu estava e dizer que eu não podia tocar aquela música ali. Isso denuncia um pensamento conservador”, afirmou Filipe Raposo. “A música clássica estava ali, naquele canto, o jazz estava naquele canto, a música popular noutro canto. Não havia estes vasos comunicantes entre as diferentes áreas. Hoje em dia, uma coisa que me dá imenso prazer e que o Filipe também pode constatar porque dá aulas na Escola Superior, é que, de repente, vários departamentos podem estar juntos, podem fazer música coletivamente.”

Filipe Melo admite que tem “tentado mudar” a sua “prioridade” por considerar que o ensino “está muito focado em desenvolver conhecimento e competência, e muitas vezes ignora completamente o estímulo da criatividade e da liberdade”. “Acho que este processo de verdadeira aprendizagem é o que está a acontecer aqui. Eu aprendo diretamente com o Filipe. Acho que o que é importante na música é a comunicação.”

(HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

Quando estava na Suécia tirar o meu mestrado na Royal College of Music, Raposo costumava fazer sessões com músicos de diferentes géneros. “Era frequente fazer uma sessão com uma flautista de música barroca, como podia fazer uma sessão com outra pianista de música clássica, como podia estar a fazer uma sessão com um quarteto de jazz.” Uma comunicação que considera “importante” e que acaba por trazer para a arte uma função educativa, criando “bons costumes”. “Neste caso, a diferença não é um problema. A diferença é bem vinda e é também isso que queremos transmitir com o nosso alinhamento.”

O limite é o bom gosto

Apesar de haver uma estrutura de “alinhamento formal, que “faz parte do trabalho pianístico”, o concerto desta sexta-feira terá “uma componente forte de improvisação”, como explicou Filipe Raposo. Isso tem a ver, não só com a formação musical dos dois pianistas, mas também com a forma como encaram a música.

“Um músico clássico é uma espécie de ator de teatro, tem um texto”, afirmou Filipe Melo. “Quando um músico tem capacidade de improvisar, quer seja sobre um texto, sobre uma estrutura ou completamente livre, é como estar a ter um diálogo. É uma experiência mágica. É um bocadinho o que se passa aqui — temos o melhor dos dois mundos, porque temos muitas vezes o texto definido, mas há uma comunicação, um diálogo. Acho que é isso que faz com que cada concerto seja diferente e que quem nos esteja a ver, esteja a seguir o interesse da nossa própria conversa. Como a conversa que estamos a ter agora, pode ter imenso interesse, porque nos está a sair bem, mas pode não ter interesse nenhum. Na música é assim: há coisas que sabem bem e outras que saem mal. É essa a aventura, e isso é que é bonito.”

“Na música é assim: há coisas que sabem bem e outras que saem mal. É essa a aventura, e isso é que é bonito.”

Contudo, a improvisação nem sempre é vista com bons olhos. Há quem seja totalmente contra, mas também existem aqueles que impulsionam essa desconstruções. “Existem fações diferentes, diferentes perspetivas sobre a mesma matéria. Quando dou aulas aos meus alunos, de composição ou de análise, o que eu costumo dizer é que a técnica, neste caso aplicada à composição, é uma espécie de ferramenta para a desconstrução”, disse Filipe Raposo. Então, qual é o limite?

(HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

Filipe Melo acredita que não há fronteiras. “A única fronteira é aquela subjetiva do bom gosto e do mau gosto.” Mas até isso é subjetivo e relativo. “O que será bom gosto para uma pessoa, será mau gosto para outra. Vou citar um colega nosso — que foi uma inspiração para nós, o Mário Laginha. Uma vez disse-me que gostava muito quando dois géneros musicais se misturam e geram algo novo e que não é bom sinal quando uma pessoa consegue ouvir um e outro. E é verdade. Quando oiço temas de rock dos Nirvana e dos Soundgarden em bossa nova fico com vontade de destruir coisas. Mas quando se juntam dois géneros e acabam por dar uma mestiçagem qualquer [isso é bom]. Para mim a fronteira é essa: a do bom gosto.”

“Quando oiço temas de rock dos Nirvana e dos Soundgarden em bossa nova fico com vontade de destruir coisas. Mas quando se juntam dois géneros e acabam por dar uma mestiçagem qualquer [isso é bom]. Para mim a fronteira é essa: a do bom gosto.”

Dando como exemplo o atonalismo de Schönberg, que mudou radicalmente o rumo da música, Filipe Raposo defendeu que é importante ousar e fazer as coisas de maneira diferente. “Acho que somos veículos importantíssimos [de mudança]. E nós não sabemos, porque estamos a viver o presente e é difícil ter consciência disso. Às vezes, há pequenas coisas que se fazem que são inícios de grandes movimentos. É como um bater de asas no oriente que acaba por criar um furacão no ocidente. Nunca sabemos a dimensão das coisas, mas é importante ter coragem para as fazer.”