Dois ex-governantes do primeiro Executivo de Passos Coelho denunciaram alegadas irregularidades na concessão à EDP de uma licença ilimitada para a exploração da central térmica de Sines e um negócio que o ex-diretor-geral da Energia Miguel Barreto fez com a principal elétrica nacional três anos depois de ter assinado a referida licença. Ao que o Observador apurou, Barreto terá recebido cerca de 1,4 milhões de euros da EDP pela venda de uma participação de 40% numa empresa de certificação energética.
Os factos denunciados estão a ser investigados pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), pois a licença, avaliada em “várias centenas de milhões de euros”, terá sido concedida sem aparente contrapartida económica para o Estado. Este é um dos alegados benefícios à EDP que estão a ser investigados pelo Ministério Público.
Para já, o DCIAP e a Polícia Judiciária já determinaram outros alegados benefícios concedidos à EDP que foram avaliados em mais de 1,2 mil milhões de euros.
As denúncias
Henrique Gomes, ex-secretário de Estado da Energia do Governo de Passos Coelho, e o seu ex-chefe de gabinete Tiago Andrade e Sousa são as caras da denúncia.
De acordo com a documentação a que o Observador teve acesso, a primeira denúncia foi feita por Henrique Gomes. Ouvido a 23 de fevereiro de 2014 no DCIAP pelos procuradores Carlos Casimiro e Susana Figueiredo, o ex-governante afirmou que uma “matéria delicada é a extensão da licença de exploração da Central Térmica de Sines”, já que após o final do Contrato de Aquisição de Energia (que vigorou entre 1995 e 2007) “a mesma foi concedida à EDP sem contrapartida aparente para o Estado” e sem prazo. Isto é, a EDP pode explorar a central enquanto existirem condições tecnológicas para a mesma funcionar com eficiência.
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Henrique Gomes cedeu ao DCIAP uma cópia da referida licença com a data de 28 de junho de 2007. Aparentemente, e de acordo com Henrique Gomes, este será o único documento do dossiê sobre a renovação da licença que existirá nos arquivos da Direção-Geral de Energia.
Mais tarde, a 16 de junho de 2014, Tiago Andrade e Sousa, ex-chefe de gabinete de Henrique Gomes e do seu sucessor Artur Trindade, foi ainda mais concreto e afirmou que “o dr. Miguel Barreto terá constituído uma empresa designada de Home Energy em 2008, após ter saído da Direção-Geral de Energia”. Tal empresa, de acordo com o testemunho de Tiago Andrade Sousa, “veio a ser adquirida pela EDP com um encaixe significativo para os vendedores”.
De acordo com um relatório do Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria-Geral da República (PGR), o valor económico de tal licença será de “várias centenas de milhões de euros” mas o valor exato ainda não terá sido apurado. Uma coisa é certa para a investigação: “a possibilidade de manter a exploração (…) por tempo indeterminado (…) tem um valor económico” que não foi negociado pelos representantes do Estado.
O negócio
A Home Energy II, SA, que foi precedida pela Home Energy – Serviços de Energia, SA, foi fundada em maio de 2008 pelo Grupo Martifer de acordo com um projeto que lhe foi apresentado por Miguel Barreto — diretor-geral da Energia nomeado em 2004 pelo Governo de Durão Barroso, que tinha saído da Direção-Geral da Energia em janeiro de 2008.
O core business da sociedade era a certificação energética e a divisão do capital inicial de 50 mil euros foi feita da seguinte forma:
- Martifer – 60%
- Miguel Barreto – 40%
Barreto passou a ser igualmente administrador-delegado da empresa.
Não era a primeira vez que a Martifer fazia negócios com ex-responsáveis públicos. Manuel Lancastre, ex-secretário de Estado do Desenvolvimento Económico do Governo de Santana Lopes, que tinha a pasta da Energia e que terá colaborado com o grupo empresarial de Oliveira de Frades após a sua saída do Executivo, adquiriu em outubro de 2006 ações da empresa Prio, SGPS (pertencente ao Grupo Martifer) por cerca de 325 mil euros. De acordo com uma notícia da revista Sábado de 2009, Lancastre investiu cerca de 3,5 milhões de euros e revendeu a sua participação em 2009 por cerca de 15 milhões à Martifer.
Voltando à Home Energy. A EDP começou a interessar-se pela sociedade maioritariamente detida pela Martifer e no final de 2010 fechou um contrato-promessa de compra e venda da totalidade do capital social por cerca de 3,4 milhões de euros. Após a Autoridade da Concorrência ter aprovado a operação em janeiro de 2011, a venda concretizou-se pouco depois, tendo a Martifer Solar (a subsidiária do Grupo Martifer que detinha a Home Energy) recebido da EDP cerca de 2 milhões de euros (2.050.814 euros para ser mais exato) e Miguel Barreto cerca de 1,4 milhões de euros.
EDP e Barreto dizem que licença é legal…
O Observador dirigiu um conjuntos de perguntas por escrito ao Conselho de Administração da EDP, tendo fonte oficial da EDP negado qualquer ilegalidade na concessão da licença ilimitada (nome técnico: licença não vinculada) da Central de Sines.
“A licença de produção em regime ordinário, tratando-se de uma atividade cujo exercício é livre, como previa o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, não está naturalmente sujeita a prazo, nos termos previstos no artigo 18.º do mesmo diploma (estes artigos correspondem, respetivamente, aos artigos 33.º-D e 33.º-O do mesmo diploma, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 215-B/2012, de 8 de outubro). Aliás, antes do regime em vigor já acontecia o mesmo: ao contrário das licenças vinculadas de produção, associadas aos Contratos de Aquisição de Energia (com um prazo entre 15 e 75 anos, consoante a natureza do centro eletroprodutor), as licenças não vinculadas não tinham qualquer prazo, nos termos previstos no artigo 60.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 182/95, de 27 de julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 56/97, de 14 de março”.
“Neste sentido, a licença de produção relativa à Central Termoelétrica de Sines, emitida a 28 de junho de 2007, cumpriu todos os pressupostos legais”, lê-se na resposta enviada pelo Departamento de Comunicação da EDP.
Na prática, a EDP entende que “não era possível, nos termos dos sucessivos regimes legais em vigor, atribuir uma licença de produção limitada em termos temporais. Com efeito, a cessação antecipada dos CAE implicava que fossem atribuídas licenças de produção e estas não têm, nem nunca tiveram, prazo de duração”, assegura a principal elétrica nacional.
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Miguel Barreto, por seu lado, invoca outros argumentos legais para fundamentar o que entende ser uma decisão legal. “A Central de Sines tinha uma licença de produção desde a sua entrada em exploração em 1985. O direito a uma licença de produção não vinculada decorria do artigo 13º do Decreto-Lei nº 183/95 que determinava que, no caso das centrais térmicas quando terminado o CAE, as centrais tinham direito a uma licença de produção não vinculada. O artigo 36º do Decreto-Lei nº 183/95 estabelecia em 1995 o seguinte: «Para a licença não vinculada não é atribuído prazo de duração…» Assim, e ao contrário do que tem sido veiculado, a Central de Sines tinha direito a uma licença sem prazo de duração desde 1995, previamente às 8 operações de privatização do grupo EDP“, afirmou por escrito ao Observador.
Barreto assegura ainda que a lei que instituiu os contratos Custos de Manutenção de Equilíbrio Contratual (CMEC), o decreto-Lei nº 240/2004, “prevê no seu artigo 14º que a entrada em vigor dos CMEC depende da atribuição de «licença de produção não vinculada», explicitando que a limitação de prazo só pode ser imposta quanto às centrais hídricas”. Isto é, “apenas no caso das centrais hídricas a legislação de 1995 previa prazo limitado quanto à concessão do domínio público hídrico e reversão para o Estado. Recordo que as centrais térmicas não tinham concessão, apenas licença, não revertendo para o Estado”.
Finalmente, argumenta Miguel Barreto (repetindo aqui uma argumentação da EDP) que o decreto-lei 172/2006 “estabelece que a atividade de produção é livre e concorrencial. Qualquer interessado pode solicitar a atribuição de uma licença de produção nos termos deste Decreto-Lei”. O gestor acrescenta ainda que o art. 18.º é “inequívoco”: «A licença de produção (…) não está sujeita a prazo de duração».
… e refutam qualquer ligação com o negócio da Home Energy
Quanto ao negócio de compra da Home Energy, a EDP garante que a operação visou adquirir um “negócio em funcionamento e crescimento, aceder a competências comerciais e técnicas de que a EDP Serviços não dispunha internamente e a sistemas de informação que geriam de forma integrada toda a certificação com escala, baixo custo e elevada qualidade”, lê-se na resposta às perguntas do Observador.
A mesma resposta enfatiza ainda dois aspetos:
- “A Home Energy (…) era líder de mercado na área de certificação e de instalação de sistemas solares”;
- “A negociação da compra da Home Energy foi iniciada e gerida com o principal acionista da empresa, a Martifer”.
Miguel Barreto, por seu lado, diz que a venda do negócio resulta de uma imposição contratual. “O Grupo Martifer decidiu, por opções estratégicas, vender em 2011 a sociedade Home Energy ao Grupo EDP. Como sócio minoritário, estava contratualmente obrigado a acompanhar a referida operação. Recordo que a Home Energy era empresa líder na área da eficiência energética com um volume de faturação superior a 8 milhões de euros em 2010 e perspetivava-se como um sério player no mercado de comercialização de energia elétrica”, afirma o ex-diretor-geral de Energia.
O Observador questionou ainda o Conselho de Administração da EDP sobre uma eventual incompatibilidade em realizar negócios com um ex-titular de alto cargo público que participou no processo legislativo que promoveu o core business da Home Energy (a certificação energética) e tomou decisões sobre a EDP, mas fonte oficial da principal elétrica nacional optou por não responder.
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A mesma pergunta foi feita a Miguel Barreto, acrescentando-se ainda a perspetiva de ter proposto a criação da Home Energy à Martifer pouco depois de ter participado como diretor-geral no processo legislativo que levou à criação das empresas certificação energética. Barreto começou por dizer que “o enquadramento legislativo referido diz respeito à transposição da Diretiva 2002/91/CE. Ou seja, foi criado a nível europeu e muito antes do meu mandato como diretor-geral. Acresce que não fui eu que aprovei esse enquadramento legislativo, até porque como é sabido, os diretores-gerais não têm competência legislativa. Acresce ainda que a obrigatoriedade de certificação energética iniciou-se em janeiro de 2009, altura em que eu não era diretor-geral”, concluiu.
Por outro lado, Miguel Barreto argumenta que o “referido enquadramento [legislativo] limita a atividade de certificação energética a Peritos Qualificados (existindo mais de 1000 em Portugal), não sendo eu, Miguel Barreto, Perito Qualificado”. E que era “apenas apenas sócio minoritário com 40% do capital social” da Home Energy.
O Observador dirigiu igualmente diversas perguntas ao Conselho de Administração da Martifer mas não recebeu qualquer resposta.
Comprou sociedade ao grupo Martifer
Em junho de 2008, a Martifer constituiu uma segunda sociedade com Miguel Barreto: a Gesto Energia. Liderada inicialmente por Jorge Martins, que é igualmente vice-presidente da holding do Grupo Martifer, a Gesto foi criada para dedicar-se “à produção de energia, promoção, licenciamento e construção de centrais de produção de energia ou instalações de armazenamento de energia, prestação de serviços de engenharia e consultoria”, lê-se na ficha da empresa depositada no Registo Comercial.
Tiago Andrade e Sousa, ex-chefe de gabinete de Henrique Gomes, foi administrador desta sociedade entre maio de 2009 e setembro de 2010.
Em 2011, Miguel Barreto passou a ser o líder da empresa, tendo adquirido progressivamente o controlo da sociedade à Martifer, depois do capital social de 50 mil euros ter sido repartido em 2008 entre a Martifer (75%) e o ex-diretor-geral de Energia (25%). Os valores do negócio não foram revelados por Barreto.
O Observador questionou Miguel Barreto sobre o facto de, no site da empresa, a EDP ser apresentada como o primeiro business partner da Gesto Energia. “A página do site referida apresenta 42 parceiros com os quais concorremos a concursos internacionais, entre os quais o grupo EDP. Até à data das centenas de concursos em que a Gesto Energia participou apenas em cerca de 5 concursos integrou consórcios em que também participou a EDP Internacional – empresa do grupo EDP dedicada à consultoria na área da energia – , a par de outras empresas não pertencentes ao grupo EDP. Até à data nenhuma das propostas apresentadas em consórcios com a participação da EDP Internacional e outras entidades foi vencedora, pelo que a Gesto Energia não tem nem teve até à data qualquer relação comercial efetiva com o Grupo EDP”, explicou.
Contudo, e mesmo que se tivesse verificado uma relação comercial com o Grupo EDP, “não vejo qualquer incompatibilidade caso tivéssemos ganho algum desses projetos”, afirma Miguel Barreto. “Procuramos sempre convidar preferencialmente empresas portuguesas para integrar os nossos consórcios, pois acreditamos no valor e qualidade da engenharia portuguesa e na importância de projetar esse conhecimento a nível internacional”, conclui.
A EDP deu uma resposta ao Observador no mesmo sentido. “A EDP Internacional e a Gesto Energia participaram em consórcios no âmbito de projetos de consultoria fora de Portugal, sendo que, até à data, as respetivas propostas não foram selecionadas em nenhum dos concursos em que participaram. Aliás, a EDP Internacional e a Gesto Energia também já foram concorrentes diretas em projetos do mesmo tipo”, conclui fonte oficial.
A Gesto, diz Miguel Barreto, “é uma das principais empresas em Portugal na área de consultoria de energia trabalhando essencialmente com África. Trabalhamos com dezenas de parceiros em inúmeros projetos para as mais respeitadas instituições internacionais (Banco Mundial, Banco Africano de Desenvolvimento, Banco Europeu de Investimento, Cooperação da União Europeia, DFID, GIZ, entre muitas outras)”.