Nome: Debaixo da Pele
Autor: David Machado
Editora: Dom Quixote
Páginas: 304
Preço: 14,90€
Todas as épocas têm os seus temas literários favoritos. Se a metáfora da cegueira salta à vista de quem lê Diogo Bernardes ou Frei Heitor Pinto, se a relação entre civilizações fascinou a literatura iluminista, de Baltasar Gracián a Voltaire ou Montesquieu, a literatura do nosso tempo vive fascinada com a infância.
Depois de invadir a teoria literária e o debate intelectual, a psicanálise parece estar finalmente repoltronada no romance. Não é apenas uma chaveta justificativa das ações ou papa instantânea para conseguir fazer crescer as personagens; num tempo em que a ação aventurosa e os grandes dramas têm uma fama que nem um bordel quereria para as suas mulheres, a relação das personagens com a sua infância é o próprio nó do enredo. Os mistérios já não têm assassinos ou russos falazes, mas traumas velados cuja revelação a trama aguenta até ao grande clímax; um Galaaz dos nossos tempos já não correria atrás do Graal, mas antes atrás das fraldas da sua infância. Todas as tinetas de um celerado encontram explicação nos seus primeiros anos, a nova moral é a sacralização da infância e o grande passatempo a descoberta de traumas encapotados pela vida adulta das personagens.
Este Debaixo da Pele não foge à regra. No fundo tem três histórias, que giram à volta da mesma infância. Há primeiro uma espécie de romance de passagem à maneira pós-moderna, em que uma rapariga Holden Caulfield dos tempos do Grunge cura uma depressão a passear uma menina de cinco anos por coios de ganzados proféticos e discotecas cheias de adolescentes; depois, há a história de um namoro perturbado entre um escritor e uma rapariga muito mais nova, namoro esse intercalado por outro que a rapariga mantém com um jovem da sua idade; por fim, conta-se a existência solitária de um miúdo a descobrir o amor, à socapa de uma mãe com alma de Zorro da moral moderna, que se dedica a resgatar mulheres maltratadas por maridos em manobras de fazer inveja ao mais experimentado oficial dos comandos.
A ligação entre as histórias é um dos pontos mais trabalhados do livro e funciona quase como segundo enredo. Isto é, só na segunda história é que se diz que a que abre o livro, narrada na primeira pessoa, é o manuscrito que a misteriosa sedutora do velho escreve; só mais à frente se percebe, também, que a rapariga escreve a história na voz da adolescente mas viveu-a como a criança que passeou pela mão da mais velha. E mesmo esta segunda história, narrada pelo velho, aparece na terceira história como um manuscrito que a supermulher da igualdade recebeu certo dia do tal velho, por ser a verdadeira adolescente da história.
É certo que esta mistura de planos – a história que primeiro aparece como real, depois já como um relato, depois como um relato escrito por outra, para depois recuperar a realidade por conhecermos os intervenientes – entretém. A nossa vontade de verdade sente-se enganada, gosta de ver a justiça reposta e, retrospetivamente, aprecia a dança; ao mesmo tempo, porém, acaba por revelar-se uma volta um tanto espúria.
Em primeiro lugar, do ponto de vista da própria ficção. No fundo, tratou-se de um golpe que leva um contra-golpe para tudo voltar ao mesmo. Aquilo que primeiro aparece como verdade deixa de o ser e volta ao ponto de partida. Não há, do ponto de vista da construção do romance, nenhuma razão para a volta; as inflexões do enredo devem ser feitas para levar a algum lado; o voltar ao mesmo é, de certa forma, uma brincadeira com o leitor: não lhe traz nada, só ameaça.
Além disso, a carga de realidade de cada uma das histórias não traz nada a nenhuma das histórias. Não se trata apenas do absurdo de não interessar muito o grau de realidade de cada uma delas quando todas são ficção; o que acontece é que este grau de realidade é uma forma de dar uma nova história à história sem lhe tocar realmente. Esta mudança dos graus de realidade é assim, podíamos dizê-lo, marginal: funciona como um enredo à parte que não tem enredo, só técnica narrativa. Não há um problema, não há uma personagem, não há um mundo — há apenas um jogo. O mundo que era real deixa de o ser e volta a ser.
Nenhuma das histórias ganha nada com este jogo; nenhuma delas ganha muito, sequer, com a junção. A primeira história tem interesse. David Machado pega naquilo que, pelas descrições, parece mais um panfleto de educação cívica do que um verdadeiro tema e consegue criar uma história com um certo interesse. As personagens secundárias não criam um mundo muito sólido – os vizinhos que discutem não passam do chavão e o ganzado profético, por exemplo, é desajustadamente burlesco numa história de tons negros – mas a personagem principal tem um esqueleto emocional bem calcificado. A sua expressão é contida, as manias adolescentes são bem apanhadas, o autor não cai na tentação de fazer das raparigas mais inteligentes ou cultas do que elas precisariam de ser e o trauma da rapariga tem consequências plausíveis e uma descrição certeira.
Na segunda história, o ambiente solitário é bem apanhado, a relação tem um lado sombrio, nabokoviano, com potencial e a enigmática rapariga consegue intrigar; a terceira história parece-nos mais disparatada no cenário – a mãe Lara Croft traumatizada que submete o filho a treinos de segurança por causa do que ela sofreu na infância – mas mesmo assim bosqueja uma história de amor cândida, com um lado transgressor da infância que inspira certa ternura.
Nenhuma das histórias, porém, nos parece desenvolvida no máximo do seu potencial. Da primeira, além da atenção que permitiria às personagens secundárias passarem do esboço, parecia-nos importante cimentar a decisão que impulsiona toda a história. O momento em que Júlia decide pegar na miúda de cinco anos para começarem uma viagem pela cidade não é inteiramente impulsivo nem justificado; não há um interesse obsessivo pela miúda, nem a leviandade adolescente que permitiria escapar à justificação. Parece que o drama da miúda – que ouve constantemente os pais a discutirem – tem importância, mas David Machado não lhe dá dimensão suficiente para justificar que aquela seja uma empreitada de salvamento da rapariga.
Da segunda, a ocupação com a realidade ou irrealidade dos manuscritos leva a que a estranheza e o carácter da relação amorosa sejam apenas impressivos; uma pessoa percebe a estranheza, mas aquilo que a primeira história ganha em ser contida – faz parte do nevoeiro depressivo não ter as linhas das justificações muito claras – a segunda perde; a obsessão pedia mais teoria sobre a natureza da relação, mais imaginação sobre o intrometido, até porque só isso justifica o confronto final entre o velho e o jovem.
A terceira perde sobretudo com o cenário estapafúrdio e é, também ela, vítima da relação entre as histórias. No fundo, funciona como um fechar de ciclo, como uma forma de sabermos o que aconteceu à adolescente depois de sabermos o que aconteceu à criança.
David Machado não nos parece um grande escritor no sentido estilístico do termo. A escrita é funcional, com uma correção escolar e as metáforas, quando as há, são limitadas. Ou de gosto duvidoso – entornar a alma nas páginas para falar do processo de escrita, por exemplo – ou dentro deste tipo que consiste em dotar as grandes palavras ou virtudes de verbos comezinhos e objetivados (entornar a alma também serve para o caso). As suas intuições psicológicas, porém, são interessantes e mereciam que, mais do concentrar-se em variações e compassos que exigem acima de tudo virtuosismo narrativo, David Machado se concentrasse nelas.