O romance de Hélia Correia “Adoecer” vai ser levado à cena pelo teatro O Bando, em coprodução com o Centro Cultural de Belém, numa peça musicada ao vivo, que mistura representação com dança contemporânea.
Com estreia marcada para sexta-feira, a peça é encenada por Miguel Jesus e conta com os atores Miguel Moreira, Catarina Câmara e Sara de Castro, em permanência, e oito convidados. Segundo o encenador, a peça começa “muito arrumada” e segue num crescendo de desordem que termina numa cena “caótica” interpretada por Catarina Câmara num “grande solo de dança contemporânea”.
A peça é acompanhada por música ao vivo, interpretada por três músicos — violoncelo, violeta e violino — e também música gravada, sendo o tema final, “Dança da Morte” gravado pela Bizarra Locomotiva. O mesmo fio condutor é seguindo pela música, primeiro “de época” e no fim completamente “atonal”.
A escolha do romance “Adoecer” nasce da paixão de Miguel Jesus pelos textos da vencedora do prémio Camões em 2015, mas a sua complexidade deixou-o pela primeira vez “sem um gancho” para o começo.
O romance dispara em muitas direções. Fui tentando encontrar um caminho: por um lado assumi que as diferenças de linguagem fazem parte da dramaturgia — a Catarina dança, o Miguel está mais direcionado para a performance e a Sara é atriz do Bando há muitos anos. Então a peça foi algo muito construído com eles e só depois de alguns improvisos comecei a escrever”, contou.
No entanto, sempre teve presente a vontade de juntar “essas duas linguagens”, a da representação e a da dança. Por outro lado, “a questão da doença que é crescente ao longo do romance, encarámos como uma greve da saúde, uma insubordinação contra uma sociedade demasiado organizada, um sintoma de liberdade. A doença vai-se tornando mais expressiva — e Catarina fá-lo através da dança — e os outros vão-se tornando mais estáticos”.
Miguel Jesus não esconde a dificuldade que sentiu em adaptar o romance, e ao mesmo tempo o gozo que lhe deu, desde logo pela “panóplia de personagens” que surgem a todo o momento e que depois desaparecem.
A primeira adaptação que fizemos tinha 42 convidados. Depois tive que reduzir para caberem numa hora e meia, senão seriam cinco dias de peça”, brincou o dramaturgo.
Miguel Jesus confessa que “o lado mais difícil de Hélia é aquela coisa que pulsa mágica”, de ligação entre coisas que aparentemente não têm nada que ver umas com as outras mas que estão relacionadas. “Isso é intransportável para o teatro, as coisas que acontecem umas a seguir às outras como coincidência”, disse o encenador.
Num cenário escuro, com figurinos a preto e branco, algumas personagens vão surgindo com mãos de plástico, mãos de manequim, uma forma de mostrar “como os convidados progressivamente se vão transformando em bonecos, vão ficando calcinados”.
[É] uma sociedade em que nos esquecemos da nossa individualidade — usamos todos as mesmas marcas, comemos nos mesmos sítios, bebemos as mesmas cervejas — e aquele ente solitário que existe dentro de nós raramente fala durante o dia e vamos ficando embonecados”, afirmou.
Miguel Jesus antecipou uma parte do final da peça, em que os ferros que estão presos ao chão se vão levantando e deixam os bonecos aprisionados. “Adoecer” tem cenografia de Rui Francisco, música de Jorge Salgueiro, figurinos de Clara Bento e Sara Rodrigues e produção de Raquel Belchior. A peça vai estar em cena em Lisboa até segunda-feira e em Palmela entre 5 e 15 de outubro.