No princípio era o Verbo. Mas o sexo não ficou muito tempo na fila de espera. O mesmo com o livre-arbítrio, que permitiu aquela caldeirada da maçã proibida, mais a expulsão do Paraíso, mais as narrativas sem conto sobre os desmandos do Homem, decantadas do pecado original. Histórias em forma de livro sagrado, de lendas e fanfarronices, de versos. De poemas dedicados às picas, às cricas e às bundas. Se dar uma dentada na fruta ou derramar o sémen no solo era sinónimo de castigo imediato, migrar esses gestos para as páginas de um livro é, pelo menos, desejo de absolvição.
Foi isso que fez Eliane Robert Moraes na Antologia de Poesia Erótica Brasileira, acabada de publicar em Portugal. Numa lógica de recolha que se quer representativa, este tomo espelha aquilo que os brasileiros têm feito com a língua, com o sexo e com o erotismo ao longo dos últimos séculos. E o resultado é ilustrativo da relação descomplexada que o país irmão tem com a lírica sexual, valendo-se da sátira, do chiste, do burlesco mas também dos conos.
Por cá damos por bom um diagnóstico consumado: os portugueses não sabem escrever sobre sexo. (Um breve parênteses para assinalar que os ingleses padecem do mesmo mal — este ano está nomeada para o Bad Sex Award uma passagem que descreve um homem carente de erecção porque está pensar em Kierkegaard). Mas voltando ao rectângulo, aquela assumpção difícil de rebater ante os exemplos que têm enxovalhado as páginas da literatura nacional. A culpa é do pudor, é do Estado Novo, da cultura de ocultação, enfim, há muitas causas a tentar impedir que a dita culpa morra solteira, mas o caso mudará de figura se considerarmos o universo específico da poesia.
Se na prosa há muitos casos passíveis de embaraço, entre a espingarda de carne, imaginada por Lídia Jorge, e a receita de sopa que se tornou numa espécie de reductio ad hitlerum deste género de artigos, na poesia – território de vinco alegórico, logo menos sujeito a pudores – o caso muda de figura. Maria Teresa Horta, António Botto ou Mário Cesariny são alguns dos nomes que asseguram o bom desempenho lúbrico da literatura do lado de cá e estão, aliás, referenciados na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, obra seminal (claro) da responsabilidade de Natália Correia, lançada originalmente em 1966, com direito a processo em tribunal plenário.
No texto que abre a Antologia de Poesia Erótica Brasileira, a organizadora diz-se devedora dessa edição portuguesa, assumindo inspiração e contágio. Na sua visão são livros comunicantes, cúmplices, que trocam fluidos e escatologias, sátiras e contundências, e também versos de Gregório de Matos, poeta nascido no Brasil que viveu uns anos na metrópole. É por ele que começamos.
Mas a maior alegria
que no cono se há de achar,
para que possa levar
dos conos a primazia
(este ponto me esquecia)
para ser perfeito em tudo
é nunca se achar barbudo,
por dar bom gosto ao foder,
como também deve ser
Chupão, enxuto, e carnudo.
Do século XVII para a modernidade, e numa penada, a explicação para a popularidade incontestada da depilação brasileira. Adiante. Manifestamente interessante neste tipo de antologias é a oportunidade de ir acompanhando o tom dos dicursos e a evolução da literatura no campo do erotismo, que é tudo menos linear. A períodos de maior libertinagem e licenciosidade seguem-se outros de maior recato e conformismo, por exemplo. Mesmo no contexto de determinada época, há discursos de vários matizes. Vejamos os casos de Laurindo Rebelo e Casimiro de Abreu, poetas contemporâneos no Brasil de oitocentos. Se Casimiro é casto e amigo de salamaleques…
Quando eu te fujo e me desvio cauto,
Da luz, do fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores –
Meu Deus, que gelo, que frieza aquela!
Como te enganas! meu amor é chama,
Que se alimenta no voraz segredo
E se te fujo é que te adoro louco…
És bela – eu moço; tens amor, eu – medo!…
…Laurindo, digamos, carrega nas tintas…
– Aqui está! Meta o dedinho
Na cavidade do centro;
Não me carregue pra dentro
Que me magoa o coninho;
Não esteja tão tristezinho
Por eu não me franquear;
Você quer me desonrar!
Olhe, eu lhe faço um partido,
Se é pra ser meu marido,
Das coxinhas pode usar.
Apesar de tudo, há um predomínio do burlesco, inaugurado justamente por Gregório de Matos, bastante palpável nesta Erótica Brasileira. Daí em diante, encontramos vários seios intumescidos, rubores e cus à discrição, e sol e luz e pétalas e sonhos inquietos para todos os gostos. Desejo hetero e homo. E flores, muitas flores e metáforas com frutas tropicais, como a que a edição portuguesa puxou para a capa, dando o tom para a colectânea e respeitando a honorabilidade do leitor que transporte o volume pelas ruas, pelo metro com perturbações, pelos locais de trabalho, recorrendo à temperatura de cor de uma Assírio & Alvim.
Neste antologia também somos muitas vezes apresentados a um imaginário de batalha, povoado de guerras santas, violências e combates, metáforas de cacete e estandarte, pelejas e fodas renhidas. É da natureza do erotismo e do chavascal, evidentemente, campo de Marte de homens e mulheres, entre outros frequentadores de surubas. Mas também notamos a aflição que é a corrida contra o tempo, que nos é apenas emprestado, e a consciência da morte, gatilho para coisas muito recomendáveis como o riso e o sexo. Palavra do Senhor. E de Omar Khouri.
Vem, amado, vem
Faze de mim o que queiras:
Arregaça-me toda, se puderes.
Por que pudores tolos,
Se o tempo, agindo como um rolo,
Comrpimirá xoxota,
Rola, ânus, peitos, boca,
Deixando tudo de fazer dó,
Transformando tudo em pó?
Numa antologia com esta temática, e tendo em conta o imaginário que todos construimos, voluntária ou involuntariamente, sobre o país do samba – a exuberância dos costumes, a folia, o temperamento tropical – não deixa de ser curiosa a presença de alguma melancolia, emanada de períodos históricos distintos e fazendo uso de desbragamentos muito próprios. As linhas que se seguem contêm deboche, sim, mas a prostração e a nostalgia rondam o corpo do poema:
Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?
À pergunta retórica de Bernardo Guimarães o membro nada responde. Já no caso de Vicente de Carvalho, é a pulsão gótica que domina o temperamento do soneto, remetendo cidades maravilhosas, cocadas e fubás ao opróbrio.
Eu penso muita vez em ti que já morreste,
Deliciosa mulher que tanto amei um dia
E que dormes agora embaixo do cipreste,
Na funérea mudez da sepultura fria.
Em ti, por quem outrora ardente eu desfolhava
A grinalda de luz dos vívidos desejos,
E em derredor de quem famélico esvoaçava
– Palpitante e febril – o enxame dos meus beijos.
E julgo ver então – negra quimera informe –
Erguer-se do sepulcro em que teu corpo dorme
Uma ossada asquerosa, e vir oferecer-me
A meus beijos, um rosto esburacado, infecto,
Onde cevou-se a boca esquálida do verme…
– E a um cadáver do amor, o amor de um esqueleto.
Bom, são gostos. E esta Erótica Brasileira tem versos para todos. Da luta do operário em construção Vinícius de Moraes contra os quatro elementos ao acinte de Moysés Sesyom em jogos de flatulência e dinastias de putedo.
Mote
Sua avó, puta de estrada
Sua mãe é fêmea minha
Glosa
A sua raça é safada
Desde a quinta geração
Seu avô foi um cabrão
Sua avó, puta de estrada
Sua filha, amasiada
Prostituta sua netinha
Esta pariu de um criado
Seu pai foi como chapado
Sua mãe é fêmea minha.
Da impenetrabilidade de Carlos Drummond de Andrade, dono de uma invulgar nomenclatura dos tratados de versificação (sic)…
Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
… aos engenhosos jogos de palavras de Altino Caixeta de Castro, ilustrativos da possibilidade de erotismo na arquitectura, sem termos de passar pelo centro comercial das Amoreiras:
Quando se preme
as popas redondas
da Amada
para a cópula
relaiza-se uma arquitetura
de cúpula,
circular,
depressão cinética-tátil,
enquanto o corpo
extenso-vertical
realiza-se gótico
Da graça de Millôr Fernandes em modo poeta-que-não-larga-a-crónica-de-costumes à graça dourada e metafórica de Mário de Andrade, com passagem pela sensualidade de lábio morno de Gilka Machado, viajamos então entre os refolhos robustos de uma poesia brasileira e erótica de vários matizes. Neste livro síntese, ficamos a conhecer autores, modos de escrever o desejo, picas e conos de todas as cores, bundas, sovacos e cavacos, mulheres-galinha que gozam o sexo e chiste social de alto coturno…
Procurador, que de graça
É de viúva patrono,
Serviço não faz ao morto;
Navega para outro porto;
Quer cono
… e até passagens de gosto duvidoso que ombreiam com a mal afamada prosa sexual do portuga
desfaleço de desejo por você só você
montar o teu corpo cândido e rubicundo
é galopar no céu
entre corcéis empinados relinchantes
Cortesia de Dalton Trevisan, Prémio Camões de 2012, que a organizadora da antologia identifica no posfácio como um cultor do riso na escrita sexual do Brasil. Resta saber se involuntário, aqui e ali. O posfácio é digno de nota porque ajuda perceber melhor as ligações entre poesia e erotismo, a enquadrar escritores, estilos e épocas, a identificar intenções e piscadelas de olho, a desmascarar as várias faces do Eros que tem muitos cultores do lado de lá do Atlântico. Eliana refere-se a uma pornografia organizada do país (apesar da gritante ausência de Alexandre Frota) e dá a cohecer melhor esta gente que burila as palavras e o deboche com cuidado, denodo. Nesta antologia altamente recomendável percebemos até que ponto a nossa língua comum pode ser maleável. E rica em sede de devassidão e anatomia. Deixo-vos com o poema de Neil de Castro que acaba unindo dois povos, escalado para a página 230 desta Antologia da Poesia Erótica Brasileira, em boa hora publicada entrefolhos. Entre nós, digo:
“Brasil Versus Portugal ou Língua Portuguesa Inculta e Bela”
Vós tendes tetas
nós temos peitos
vós tendes conas
temos bocetas
vós tendes cus
nós temos bundas
e uma profunda
sinonímia
do que é cu
para nós outros:
boga, boscofe
frinfa, ceguinho
lorto, cioba
cbió, foba
abre-e-fecha-sem-cordão
franzido, pisca-pisca
olho-da-goiaba
alvado, fiobó
pevide, viegas
zé-do-ó
zé-das-pregas
zé-do-peido
escurinho
fim de espinhaço
rego, poço
e eticétera.
A nossa língua
tal como a vossa
usa a francesa
faz o minete.
Mas a trombada
da nossa língua
não é trombada
é mais lambida
é mais chupada.
Vós tendes vós
temos vocês
por não sabermos
mais concordar
nossos plurais.
Vós e vossa excelência
sabem a ruibarbosa
ou indecência.