“Recuso-me a escolher entre os meus alunos.” Rodrigo Ribeiro, diretor de uma escola particular em Lisboa, ainda está surpreendido com a indicação que recebeu da Direção Geral da Administração Escolar (DGAE).
No início do ano, as escolas enviam para a tutela a lista de alunos que têm direito a receber ajuda financeira do Estado para pagar mensalidades. Até aqui nada de novo. O dinheiro chega meses mais tarde, em duas ou três tranches, e as escolas entregam-no às famílias. As regras estão definidas na lei e não é habitual haver problemas. Até este ano.
Em dezembro, o diretor da Escola de Pedro Nunes recebeu da DGAE uma espécie de manual de procedimentos para estes contratos de apoio à família. E logo ali estranhou algumas alterações. O que saltava à vista era o valor disponível para apoiar os alunos a pagar as mensalidades do colégio.
Pela primeira vez, desde que estes apoios existem, estabelecia-se que o valor máximo da contrapartida financeira a atribuir aos alunos daquela escola não poderia ultrapassar o valor entregue no ano anterior. E isso era um problema.
“Isto nunca aconteceu antes”, argumenta Rodrigo Ribeiro. Tal como todos os anos, o diretor pôs em andamento o processo: pediu às famílias os documentos necessários para fazerem prova de que têm direito à ajuda estatal e enviou a informação necessária para a DGAE.
Feitas as contas desta escola, no 1.º e no 2.º ciclo o Estado teria de entregar menos 7 mil euros do que no ano letivo anterior. Mas no pré-escolar era o contrário. As crianças matriculadas este ano teriam direito a receber do Estado mais 900 euros do que aquelas que no ano anterior tiveram direito ao apoio.
Confrontada a DGAE com o que fazer a seguir, a resposta foi rápida, conta Rodrigo Ribeiro.
Através de email, voltaram a dizer que o valor máximo da contrapartida não iria ultrapassar o do contrato do ano anterior.”
Então o que faz a escola? “O que nos foi dito, por outras palavras, foi para sermos nós a escolher quem tem direito ao apoio estatal. Ou então, sermos nós a suportar esse valor. Eu recuso-me terminantemente a escolher, a dizer que este aluno parece ter mais necessidade de apoio do que outro. Há regras definidas e é isso que tem de valer.”
Na Escola de Pedro Nunes, há 9 alunos do pré-escolar, de um total de 21, que têm direito ao apoio estatal, mais dois do que no ano letivo de 2016/2017. Três deles estão no primeiro escalão e têm direito ao apoio máximo do Estado — há quatro escalões diferentes — e depois há dois alunos em cada um dos restantes escalões.
Para já, a solução encontrada por Rodrigo Ribeiro — que já se reuniu com os encarregados de educação para lhes dar conta do sucedido — é dividir o mal pelas aldeias. Se não houver outro tipo de resposta da tutela, pretende dividir de forma proporcional a ajuda estatal por todas as famílias, de modo a que nenhuma deixe de receber a ajuda a que tem direito.
O mais provável é que cada um dos agregados familiares acabe a receber menos 100 euros do que aquilo que esperava e resta também saber se a DGAE aceita esta solução.
Até agora, o diretor não recebeu mais nenhuma resposta da tutela aos seus pedidos de esclarecimento.
O Ministério de Educação, questionado pelo Observador, diz não se ter registado nenhuma alteração legislativa relativa a estes tipos de contratos e garante que “serão consideradas as famílias que cumpram os requisitos legais, dentro dos limites máximos da despesa autorizada, como resulta da legislação aplicável”. E acrescenta que no Orçamento do Estado de 2018, não se registam alterações significativas relativamente aos valores destes contratos.
Colégios questionam legalidade da medida
Estes contratos de apoio às famílias estão previstos na lei e no Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior. E é ali que se lê que “têm por objetivo permitir condições de frequência em escolas do ensino particular e cooperativo, por parte dos alunos do ensino básico e do ensino secundário não abrangidos por outros contratos.”
O decreto-lei 152/2013, assinado pelo então ministro da Educação Nuno Crato do governo de Pedro Passos Coelho, estipula ainda que todos os anos “o apoio financeiro a conceder pelo Estado é fixado por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da educação.”
A portaria para o ano lectivo 2017/2018 já foi publicada e em momento algum faz referência a que os apoios não possam ultrapassar aqueles que foram concedidos no ano letivo anterior.
“Não há fundamento legal para esta situação”, garante o diretor da AEEP, a Associação de Estabelecimentos de Ensino Particulares. Rodrigo Queiroz e Melo está a par desta situação na Escola de Pedro Nunes e sabe que não é a única. Bem pelo contrário.
Todas as escolas que estabelecem este tipo de contrato de apoio às famílias — os chamados Contratos Simples para o 1.º ciclo e seguintes e Contratos de Desenvolvimento para o pré-escolar — receberam a mesma nota da DGAE. O que acontece é que nem todos estão a sentir na pele o problema.
É o caso da CEBE – Cooperativa de Ensino de Benfica. A diretora Helena Barros diz não ter tido qualquer tipo de problemas, mas também porque os valores de apoio às famílias dos seus alunos não ultrapassaram os do ano anterior.
Na Escola de Pedro Nunes o problema não se sentiria se não fosse o aumento de alunos com direito a apoio no pré-escolar. No 1.º e 2.º ciclo, de um total de 111 alunos, há 29 a requererem o apoio estatal, menos 9 do que no ano anterior. Mas também esta situação preocupa o diretor, porque não sabe o que acontecerá para o próximo ano se o número de famílias a pedir ajuda para pagar as mensalidades voltar a aumentar.
“Estamos a assistir a esta situação com angústia e preocupação”, diz Queiroz e Melo. “Fomos surpreendidos em dezembro com várias alterações que, no nosso entender, carecem de fundamento legal. Este ano, pela primeira vez, surge um documento da DGAE onde se coloca um teto para os apoios do Estado e onde se diz que o valor não pode ser superior ao do ano anterior.”
E acredita que esta medida não faz qualquer sentido, já que é impossível o valor não variar de ano para ano. “Basta que haja uma situação de desemprego para que uma família que não tinha direito ao apoio passe a tê-lo”, argumenta o diretor da AEEP. Ou, por exemplo, o nascimento de um novo filho, que irá alterar o valor que o agregado familiar tem disponível para cada membro e que em alguns casos poderá abrir a porta ao direito a receber o apoio do Estado.
Queiroz e Melo repudia também a mudança das regras a meio do jogo. Quando as escolas começaram a receber a nota da DGAE, em dezembro, já o ano letivo tinha começado há três meses.
Há muitos pais que só colocaram os seus filhos nos colégios porque sabiam que iam ter este apoio.”
E se o apoio não chegar, as escolas irão mesmo escolher quem fica com o apoio do Estado? “Era o que mais faltava. Não são as escolas que decidem quem tem direito a apoio ou não. É o Estado quem terá de avisar as famílias que não lhes vai pagar.”
Quase 30 mil alunos abrangidos
Os contratos simples e de desenvolvimento existem desde os anos 1980 e são celebrados anualmente com os colégios e não com as famílias, embora sejam elas a receber o apoio. A explicação, para Rodrigo Queiroz e Melo, é simples: “É mais fácil fazê-lo com 200 escolas do que com quase 20 mil alunos.”
No atual ano letivo, segundo os dados da AEEP, há 320 colégios que celebraram Contratos Simples e que abrangem apoios financeiros para 22 mil alunos. O Orçamento do Estado prevê gastar com eles 19,3 milhões de euros. Já os Contratos de Desenvolvimento foram celebrados com 370 colégios, abrangendo 7500 alunos. O valor orçamentado é de 7,7 milhões.
O processo, que até ao ano passado era gerido pela DGEstE (Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares), passou agora para as mãos da DGAE.
“Isto nunca foi um problema, as variações sempre aconteceram e são uma gota de água para um ministério que tem um orçamento de 5,2 mil milhões”, argumenta Queiroz e Melo, que já teve reuniões com o governo para expor a situação, com a Casa Civil do Presidente da República e deu nota aos partidos políticos do que está a acontecer.
Todos os anos há dúvidas com estes contratos, mas até agora sempre foram resolvidos. Sempre houve razoabilidade. Se não ficar resolvido, vamos ter um problema grande para o ano.”
Para o diretor da Escola de Pedro Nunes, se esta regra se mantiver a intenção é só uma: acabar com os contratos de apoio às famílias. “Se todos os anos a verba for sendo menor, chegaremos a um ponto em que os apoios deixam de existir.”
E esta é uma situação que preocupa a AEEP. “Estão-nos a empurrar para ter pessoas todas iguais dentro dos colégios. E não é isso que queremos. Para as classes médias e altas haverá sempre escolha entre ensino público e particular. Para as famílias pobres, só haverá uma escolha: o público. E quando temos os filhos dos ricos só com outros filhos de ricos, e os filhos de pobres só com filhos de pobres perpetuam-se as desigualdades sociais.”
Intencionalidade política ou excesso de zelo?
Para Queiroz e Melo esta situação só pode estar a acontecer por um de dois motivos: excesso de zelo ou intencionalidade política.
“A DGAE está a ser mais papista que o Papa. Mas se for excesso de zelo, então os políticos podem resolver o problema. Esperamos que haja uma instrução superior e que seja ultrapassado o problema. Se houver uma intenção política, de acabar com o Contrato Simples então o que dizemos é que isto não tem razão de ser. Não se trata de receitas para os colégios. Os apoios são para as famílias. Nós queremos educação para todos, não queremos que o ensino particular e cooperativo seja reduzido a uma parte privilegiada da população.”
Se a tutela não arranjar solução, Queiroz e Melo diz que as situações terão de ser resolvidas caso a caso.
Não há risco de os alunos não terminarem o ano. Sempre que possível, os estabelecimentos de ensino irão resolver a situação. E o que é que isto significa? Que serão os colégios a arcar com a despesa.”
Rodrigo Ribeiro sabe que isso é um risco. Embora na maioria dos casos, a mensalidade seja cobrada na totalidade às famílias — que mais tarde recebem o apoio a que têm direito — há casos em que sabe que se não fizer logo o desconto à cabeça, as famílias não têm condições de inscrever os seus filhos na escola que dirige. “É um risco para a escola. Porque, se o apoio não chegar, há famílias que não têm mesmo como pagar e aí, que remédio, é a escola que arca com a despesa. Fazemos tudo com base em relações de confiança mas é verdade o que se diz. O Estado nem sempre é uma pessoa de bem.”