Para assinalar o dia mundial contra o racismo — que se celebra no dia 21 de março como memória do massacre de Sharpville, um dos episódios mais negros do Apartheid, na África do Sul –, vários grupos de ativistas brasileiros empenharam-se nos “21 Dias Contra o Racismo“. A campanha, que começou a 6 de março e se prolonga até ao dia 27, passa por um conjunto de iniciativas, como debates, encontros e conversas, destinadas a colocar na agenda mediática o problema do racismo na sociedade brasileira.

No Rio de Janeiro, a vereadora Marielle Franco, eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para a câmara da cidade, decidiu dar um contributo para esta campanha, convidando um conjunto de mulheres negras que se têm destacado pela luta contra a discriminação para uma conversa a que deu o nome “Jovens negras movendo as estruturas“. A conversa prolongou-se até perto das nove da noite, com a cineasta Aline Lourena, a publicitária Mohara Valle, a escritora Ana Paula Lisboa e a responsável do “Hub das Pretas do Rio de Janeiro”, Hellen N’zinga. O que tinham em comum? O facto de todas serem jovens mulheres negras que saíram das favelas do Rio de Janeiro e chegaram longe.

No fim do evento, Marielle Franco dirigiu-se ao seu carro, um Chevrolet Agile branco que a transportaria para casa. Ao volante, esperava-a Anderson Pedro Gomes, de 39 anos, um desempregado que estava a substituir o motorista da vereadora — que era seu amigo e que estava de baixa.

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Para desenrascar o amigo, Anderson prontificou-se para conduzir o carro da vereadora no breve percurso entre a Lapa, no centro da cidade, onde decorreu o evento, e a casa de Marielle, na Tijuca Anderson, que também fazia serviços como motorista da Uber, tinha feito um curso de mecânico e preparava-se para iniciar um período de teste como mecânico de uma empresa de aviação dentro de poucas semanas, como conta a Folha de São Paulo.

No banco de trás seguia Fernanda Chaves, assessora da vereadora, que a acompanhava na leitura de um texto que seria enviado a um jornal.

O carro seguiu pela cidade tranquilamente. A dada altura, parou junto da estação de metro Estácio. Ao seu lado, parou um outro carro. De repente, foram disparados nove tiros a partir daquele veículo, todos dirigidos ao banco de trás do carro, onde a vereadora ia sentada. Quatro tiros atingiram Marielle na cabeça, três atingiram o motorista nas costas. Os dois morreram de imediato.

A assessora, Fernanda Chaves, foi atingida por estilhaços. Em pânico, conseguiu tirar a perna do motorista do acelerador do carro e desligá-lo. Depois, atirou-se para fora do veículo, afastando-se agachada no chão, como explica a revista brasileira Veja.

Em pouco tempo, a Polícia Civil chegou ao local, encontrando a assessora a tremer. Ainda durante a madrugada, Fernanda Chaves contou às autoridades aquilo de que se lembrava e, quando teve autorização médica, foi para casa, de onde ainda não conseguiu sair devido ao choque, acrescenta a mesma publicação.

Os agentes da polícia começaram de imediato a examinar o local do crime e encontraram cápsulas de calibre 9 mm, um tipo de munições que não pode ser vendido à população. Segundo a TV Globo, a perícia policial identificou aquelas munições em particular como tendo sido adquiridas pela Polícia Federal de Brasília a uma empresa privada. O mesmo tipo de balas tinha sido usado em 2015, em São Paulo, naquela que foi considerada a maior chacina da história daquela região — morreram 17 pessoas e quatro agentes das autoridades foram condenados.

Este facto adensou as suspeitas que logo de início se formaram: a morte da vereadora podia estar ligada à própria polícia. Porquê? Marielle Franco, além de ativista pelos direitos das mulheres negras, tem sido uma voz ativa na denúncia das chamadas milícias, os grupos policiais que têm ligações a bandos de traficantes de droga nas favelas do Rio de Janeiro, protegendo-os à margem da lei. A situação na cidade atingiu proporções tais, que no mês passado o Exército se viu forçado a assumir o controlo da segurança no Rio de Janeiro.

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Marielle Franco tem utilizado o Twitter para denunciar mortes que, acusa, têm origem nestes agentes policiais corruptos. A vereadora, oriunda da Maré, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, tem chamado frequentemente a atenção para os inocentes que morrem nas favelas em tiroteios começados por estes agentes, tendo também feito duras críticas às autoridades por permitirem a continuação destes esquemas. Por isso, as suspeitas do crime voltaram-se de imediato para estas milícias.

Outro detalhe fez as suspeitas recaírem sobre as polícias: Marielle Franco tinha sido recentemente nomeada relatora de uma comissão designada para avaliar a intervenção dos militares na segurança pública do Rio de Janeiro.

A morte de Marielle Franco — que muitos no Brasil não têm dúvidas em considerar uma execução encomendada — tornou-se num caso político de nível mundial. Manifestações contra a violência policial e a discriminação nas favelas repetem-se por todos os estados do Brasil e por diversos países do mundo, incluindo em Portugal. A nível internacional, mais de 50 deputados do Parlamento Europeu pediram a suspensão das relações entre a União Europeia e o Mercosul por causa do crime.