O Museu Nacional do Azulejo e o Museu do Design e da Moda (MUDE) foram contactados em 2015 para que adquirissem um pórtico do artista plástico Querubim Lapa, mas deixaram passar a oportunidade e a obra está agora à venda na Feira de Arte e Antiguidades de Lisboa, que decorre até dia 22 de abril na Cordoaria Nacional. O preço é de 35 mil euros e inclui um restauro entretanto executado.
“A pedido do artista, foi feito um contacto formal com estes dois museus, que não mostraram interesse claro, por falta de verbas”, afirma Nuno Lopes Cardoso, da Galeria Objectismo, agente dos atuais proprietários do pórtico. Contactado pelo Observador, o historiador de arte e especialista em azulejaria José Meco considera a peça “muito importante” e “representativa da fase inicial do trabalho de Querubim, ainda com elementos neorrealistas”, pelo que “deveria ser incorporada na coleção de um museu”.
O Museu do Azulejo é tutelado pelo Ministério da Cultura, e o MUDE pertence à rede de museus da Câmara de Lisboa. As instituições e os responsáveis políticos foram questionados pelo Observador, mas até ao momento não comentaram o assunto.
O pórtico é de 1956 e foi criado por Querubim Lapa (1925-2016) para a entrada de uma das lojas mais famosas do Chiado na segunda metade do século XX, a Loja Rampa, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro. Vendia roupa de homem e mulher, perfumes e peças de arte especialmente criadas por artistas plásticos portugueses. Funcionou entre 1956 e 1980, ano em que acabaria por ser demolida.
O espaço tinha sido projetado pelo arquiteto modernista Francisco da Conceição Silva (1922-1982) e o nome vinha-lhe da rampa de betão armado que ligava os pisos interiores. “Foi um símbolo de modernidade e ousadia em Portugal”, classifica José Meco, que destaca uma outra colaboração entre Querubim e Conceição Silva: o Hotel do Mar em Sesimbra, de 1963.
O pórtico de Querubim serviu de elemento estrutural na enorme montra de vidro da Rampa e foi imortalizado pelo realizador Paulo Rocha, que junto a ele filmou uma cena de “Os Verdes Anos”, em 1963.
Com 220 centímetros de altura, 170 de largura e 30 de profundidade, é revestido a azulejos policromáticos com representações de elementos vegetais e animais e de figuras humanas de corpo inteiro. Os azulejos foram executados por Querubim no atelier permanente que então tinha na Fábrica da Viúva Lamego (junto ao Jardim Zoológico, em Lisboa).
Hoje considerado um dos mais importantes artistas visuais portugueses — “o nosso maior ceramista do século XX, que foi além do quadrado cerâmico puro”, no dizer do historiador José Meco —, Querubim dava em 1956 os primeiros passos como criador, depois de se ter estreado em 1954 com o revestimento exterior do Centro Comercial do Restelo, do arquiteto Chorão Ramalho (1914-2002).
Nem o autor sabia do pórtico
Depois da demolição da loja, a peça esteve mais de três décadas em parte incerta, apesar de relatos que a davam como abandonada num edifício do Largo do Carmo. Reapareceu em 2015, quando Nuno Lopes Cardoso decidiu organizar uma exposição retrospetiva de Querubim, na galeria de que é proprietário — a Objectismo, no Príncipe Real, dedicada à cerâmica modernista de autor e de produção industrial, das décadas de 40 a 70.
“No contexto da exposição que fizemos em finais de 2015, a última exposição de Querubim em vida, a curadora Rita Gomes Ferrão tentou descobrir onde estaria o pórtico, mas ninguém sabia, nem o próprio artista”, recorda Nuno Lopes Cardoso.
No entanto, cerca de um mês antes da inauguração, o galerista falou com os filhos do arquiteto Conceição Silva e estes disseram-lhe que a peça estaria numa garagem da família, em Lisboa. “Até demos um salto”, relata Nuno Lopes Cardoso.
“Ao que me contaram, a peça foi recolhida em 1980 por um indivíduo ligado à demolição da Rampa. Guardou-a particularmente e alguns anos depois, não sabendo o que fazer com ela, foi entregá-la aos filhos do arquiteto. Eles próprios nunca tinham divulgado a existência da peça e ela estava fechada havia mais de 30 anos.”
Os herdeiros concordaram em ceder o pórtico para a exposição, mas antes disso foi feito o restauro dos azulejos partidos ou em falta, trabalho em que participaram Querubim e Susana Barros, mulher e antiga aluna.
“Foi um pesadelo movimentar o pórtico, porque era uma peça completa, com estrutura em ‘U’, toda em ferro. Já estava muito danificada e levámo-la para o atelier de Querubim para ser consolidada”, conta Nuno Lopes Cardoso.
De peça inteira passou a três elementos autónomos montáveis e tornou-se a atração da mostra “Queribum Lapa: Primeira Obra Cerâmica, 1954-1974”, em outubro de 2015. Nessa ocasião os quatro filhos de Conceição Silva, que se assumem como proprietários, pensaram na hipótese de venda, o que veio a tomar forma pela primeira vez agora, por ocasião da 23ª Feira de Arte e Antiguidades de Lisboa.
Segundo o galerista, trata-se de uma obra que “representa uma parte importante da história do design e da arte” em Portugal e, por ser um pórtico, “poderia adaptar-se ao espaço de um museu, até com uma função utilitária”. “Os museus poderiam encontrar alguma solução financeira através de mecenas ou de patrocinadores”, sugere. Se não aparecerem compradores, o pórtico deverá regressar à mesma garagem onde esteve guardado durante décadas.