A sua imagem em Timor foi sempre colada à do governo de Xanana Gusmão. Foi naquele país que ocupou cargos cimeiros no Supremo Tribunal e no Conselho Superior de Magistratura, numa carreira que se prolongou por 14 anos. E foi nesses cargos que Cláudio Ximenes se opôs à decisão de dois juízes portugueses relativamente a um membro do governo. O juiz do Tribunal da Relação de Lisboa, que mandou esta quinta-feira o processo de Manuel Vicente para Angola, causou celeuma entre magistrados e acabou por bater com a porta, regressando a Portugal. Meses depois desse ponto final, explicou numa entrevista ao Sol que “os tribunais devem fazer justiça e não vinganças pessoais”.

Não estava há muito tempo no Tribunal da Relação de Lisboa, vindo das varas criminais — ainda assim se denominavam e funcionavam no extinto Tribunal da Boa Hora — quando surgiu a oportunidade de ir trabalhar como juiz cooperante em Timor. Em 2003, a falta de profissionais na área levara ao recrutamento internacional e como as suas origens estavam naquele país não hesitou.

Contribuiu para os códigos penal e do processo penal timorenses e esteve à frente do Supremo Tribunal de Recurso e do Conselho da Magistratura do país. Mas, em fevereiro de 2014, acabaria por pedir a demissão do cargo em colisão com uma decisão que acabou por tornar-se polémica. Em causa um pedido de habeas corpus apresentado pela ex-ministra da Justiça, Lúcia Lobato — que foi condenada um ano antes a uma pena de cinco anos de prisão por “participação económica em negócio com prejuízo para o Estado timorense” no valor de 4.200 dólares. O crime estava relacionado com a aquisição de fardas para equipar guardas prisionais da Direção Nacional dos Serviços Prisionais e de Reinserção Social.

Em janeiro de 2013, Lúcia Lobato foi detida para cumprir pena de cadeia, mas o seu advogado pediu ao Tribunal de Recurso que a detenção fosse considerada ilegal (habeas corpus) alegando que devia ser libertada uma vez que a decisão de primeira instância ainda não tinha transitado em julgado. O Tribunal decidiu não conceder o habeas corpus, mas houve um “voto vencido”, assinado pelo próprio presidente do tribunal de Recurso, Cláudio de Jesus Ximenes.

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Na altura, este voto vencido foi tomado como decisão pelo advogado da governante, Sérgio Hornai, que chegou a divulgar aos jornais que a ministra seria libertada porque o habeas corpus tinha sido aceite. No entanto, o acórdão do Tribunal de Recurso concluiu que a prisão não tinha sido ilegal.

O caso estava longe de ficar resolvido. Dias depois, em fevereiro de 2013, numa carta enviada ao Conselho Superior de Magistratura timorense, com o conhecimento do órgão homólogo em Portugal, a juíza Margarida Veloso — também portuguesa a trabalhar em Timor — acabaria por denunciar possíveis “erros jurídicos” naquela decisão. A magistrada dava conta de um e-mail que lhe tinha sido enviado por um dos juízes que decidira manter a ex-governante presa e que mostrava como o sistema judiciário, ainda em construção, estava melindrado pelo poder político.

Sempre com a ressalva de que aquela informação não pretendia ser uma defesa da arguida, por defender “uma magistratura independente”, a juíza referia que até as regras da escolha dos juízes que se iriam debruçar sobre o caso teriam sido violadas. No mail que anexava, enviado pelo juiz Rui Penha, denunciava que uma juíza tinha ameaçado não renovar o contrato a outro magistrado, caso ele não recusasse o habeas corpus.

Margarida Veloso acabaria suspensa por 40 dias pelo Conselho Superior de Magistratura por acusar dois colegas portugueses de manipular e influenciar o processo judicial. Mas um juiz do Supremo acabaria por dar-lhe razão: “A recorrente denunciou factos notoriamente integrantes de graves ilegalidades e irregularidades procedimentais suscetíveis de, no mínimo, serem causa de grave prejuízo para a arguida Lúcia Lobato”.

Já a ex-ministra da Justiça acabaria por ser libertada dois anos depois de cumprir pena, graças a um indulto concedido pelo Presidente Taur Matan Ruak, em 2015. Em liberdade, não hesitou em divulgar várias informações na sua página de Facebook, em que confirma ter comunicado várias vezes com o juiz Claúdio Ximenes, mas recusa que tenha sido para ser beneficiada penalmente.

Oito meses após regressar a Portugal, em novembro de 2014, Claúdio Ximenes, colocado na 9.ª secção criminal do Tribunal da Relação, a mesma do juiz Rui Rangel — recentemente constituído arguido no âmbito da Operação Lex — dava uma entrevista ao jornal Sol. Dizia que dificilmente voltaria a trabalhar em Timor pelos mesmos motivos que o levaram a regressar: “Timor-Leste precisa de juízes que façam justiça com independência e imparcialidade. E isso não se consegue só com declarações enfáticas sobre a independência dos juízes e dos tribunais. Requer, sim, um trabalho sério e demorado”. Garantiu, porém, nunca se ter sentido “pressionado” pelo governo timorense.

Semanas antes desta entrevista, o Governo timorense tinha expulsado 50 funcionários judiciais internacionais, incluindo cinco juízes, um procurador e um oficial da PSP de nacionalidade portuguesa. Assim que foram notificados pelo Serviço de Migração, os visados tiveram 48 horas para abandonar aquele país. Justificação: “Estes profissionais externos” revelaram “falta de capacidade técnica” para “dotarem funcionários timorenses de conhecimentos adequados”. E apontavam-se fragilidades do sistema judicial timorense como a “capacidade de resposta dos tribunais”, mas também “incidentes referentes a irregularidades jurídicas, tanto materiais, como processuais, que vêm contaminando os processos, expondo o país a ameaças externas à sua soberania e subsequente segurança nacional”.

“Aparentemente existe uma interferência, mas apenas aparentemente. A experiência que tenho não me permite acreditar que estas decisões tenham como objetivo controlar os tribunais ou impedir os julgamentos de figuras políticas. Enquanto lá estive foram julgados, e condenados ou absolvidos, vários políticos  – como o atual ministro dos Negócios Estrangeiros, José Luís Guterres, e o ex-ministro da mesma pasta, Zacarias Lobato – e na altura não houve nenhuma demonstração da intenção de influenciar a decisão dos tribunais”, disse Cláudio Ximenes, ao Sol.

Cláudio Ximenes não foi surpreendido pela decisão: “Saí do Supremo porque já havia problemas na Justiça. Mas o confronto não era um confronto entre tribunais e poder político… Penso que o Governo queria encontrar uma solução para um problema que estava a afetar os tribunais”. O magistrado garante que o poder político timorense não interferia no poder judicial. “Aparentemente existe uma interferência, mas apenas aparentemente. A experiência que tenho não me permite acreditar que estas decisões tenham como objetivo controlar os tribunais ou impedir os julgamentos de figuras políticas. Enquanto lá estive foram julgados, e condenados ou absolvidos, vários políticos  – como o atual ministro dos Negócios Estrangeiros, José Luís Guterres, e o ex-ministro da mesma pasta, Zacarias Lobato – e na altura não houve nenhuma demonstração da intenção de influenciar a decisão dos tribunais”, afirmou ao Sol.

Em 2015, o nome do magistrado voltou a ser referido por causa de uma decisão que envolvia uma figura mediática por um crime de violência doméstica: apresentadora de televisão Bárbara Guimarães. Como a Lusa então noticiou, o Tribunal da Relação de Lisboa revogara a decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa de levar a julgamento a apresentadora por violência doméstica contra o seu ex-marido, Manuel Maria Carrilho.

No acórdão assinado por Cláudio Ximenes lia-se que os maus tratos psicológicos que o ex-ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, a acusava de lhe ter infligido não tinham ficado provados. Logo, ela não podia ser julgada por isso.

Esta quinta-feira, o magistrado voltou a ser referido. Foi ele o desembargador relator do acórdão que entregou o inquérito relativo ao ex-vice-presidente, Manuel Vicente, acusado de corrupção ativa a Angola. O juiz, que teve como adjunto na decisão tomada por unanimidade o juiz Manuel Almeida Cabral, decidiu que se o processo continuasse em Portugal e fosse declarada a contumácia do ex-governante angolano, dificilmente o processo teria efeitos práticos. Por isso, sustentando-se nos princípios da boa administração da justiça, da reinserção social em caso de condenação e no regime jurídico mais favorável para o suspeito, delegou o processo. Claúdio Ximenes contrariou, assim, as decisões de primeira instância e devolveu as boas relações diplomáticas a Angola e Portugal.

A sentença do caso Manuel Vicente descodificada