Assim como o bater de asas de uma borboleta pode provocar um tufão do outro lado do mundo, o último batimento cardíaco do escritor norte-americano Philip Roth em Manhattan, Nova Iorque, terá provocado um gargantuesco suspiro de alívio em Estocolmo, Suécia. Acabou-se do embaraço da (não) escolha e as perguntas dos jornalistas e o defraudar das casas de apostas. Roth já não vencerá o Nobel da Literatura, juntando-se assim à gesta de escritores insignificantes como Marcel Proust, Franz Kafka, Jorge Luis Borges ou Virginia Woolf. Mas nem tudo o que luz é ouro com que se faz a medalha da Academia.

Mais importante do que os galardões é o impacto provocado nos leitores, na história das letras e na trama das sociedades evisceradas pelos personagens de um autor. Quando soube da morte de Philip Roth (obrigado pela mensagem por volta das sete e meia da manhã, Tiago Pereira, também prezo muito o teu sono), lembrei-me imediatamente de outro autor com muito menos projecção: Federico Andahazi, escritor e psicanalista argentino que publicou O Anatomista, romance que narra a vida de um médico da Itália medieval sedento de conhecimento e empenhado em dissecar corpos. Nele também se especula sobre a condição feminina, pouco menos que terrível, e sobre a descoberta do clitóris – a descoberta da América, nas palavras do personagem Mateo Colombo – que acaba por condená-lo, acusado de satanismo.

Sexo, curiosidade, América, vivissecção de corpos e almas, ingredientes-chave da obra de Philip Roth, que leio como um anatomista do século XX, isento de inquisições, mas ainda assim sujeito a criticismos de vários géneros. E números. Mérito de alguém que soube pôr um espelho sobre o papel, obrigando os leitores (e ele próprio) a confrontarem-se com aquilo que normalmente é preferível manter longe do olhar de terceiros. Culpa, embaraço, desejos irreprimíveis, pulsões sexuais, fracturas e recriminações entre aqueles nos são mais chegados. Lá diz a sabedoria popular: a família não se escolhe, a identidade está sujeita a abanões, o escárnio faz muitas vezes o papel de escape.

Roth escreveu sobre si e sobre a sua família, mais ou menos alegadamente, dissecou a época em que viveu – músculo a músculo, nervo a nervo – e reflectiu em modo caterpillar sobre a matéria de que é feito um judeu, fazendo uso de um humor muito particular, leia-se sardónico. Situação que lhe valeu acusações de toda a índole, antissemitismo incluído. “Os judeus medievais teriam sabido o que fazer com ele”, terá afirmado um rabino norte-americano, por altura da publicação de Goodbye, Columbus. Também foi – e é – acusado com regularidade de misoginia, mercê do ponto de vista masculino que elegeu para os seus romances e para as suas sessões de terapia em modo literário, saturadas de frustrações, neuras e indivíduos que não prestam.

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Ou seja, materializou, mesmo que de forma mais ou menos involuntária, uma discussão recorrente quando nos confrontamos com a prática artística. A saber: quanto do autor está na sua criação? Será possível admirar um autor de grande mérito literário, admitindo que ele possa ser uma pessoa pouco recomendável? Ao longo da sua carreira, Roth foi-se defendendo das acusações e dos estilhaços de relacionamentos mal resolvidos. No papel, carregou nas tintas de sempre, casando amor e morte, doença e sexo, ressentimento e derrisão, e construindo uma obra verdadeiramente ímpar, sendo um dos últimos autores “à moda antiga”, universais, influentes, de referência, num mundo literário (e não só) cada vez mais atomizado.

Com o tempo, aprofundou o retrato da América, da sua América vista de sobretudo a partir de Nova Jérsia, embebendo política nas narrativas, fazendo história alternativa, confrontando laços de afecto com ideologias. Nesse particular, nutro um carinho muito particular por Pastoral Americana, cadinho de expectativas dinamitadas e de conflitos na intimidade do núcleo familiar, com um país dilacerado em pano de fundo. E também o intuir do populismo avant la lettre, embora reportando a uma época passada, de A Conspiração Contra a América, a qual já não conseguimos revisitar sem pensar em Donald Trump.

Antes de chegar aos 80 anos, Roth parou de escrever, dedicando-se à leitura. Arredondou a obra com pequenas pérolas como A Humilhação, retrato implacável da velhice e consequente perda de faculdades que também o terá assolado, e passou a aguardar com tranquilidade o cair do pano. Antes dessa saída de cena, ainda assistiu ao escândalo sexual que enxovalhou a Academia Sueca e que levou ao cancelamento da atribuição do prémio Nobel da Literatura deste ano. Gosto de pensar que adivinhou ali matéria de deboche e romance, que já não escreveu. De pé, como era seu hábito, martelando um teclado de computador. Ainda assim, para nosso consolo, há dezenas de livros de Philip Roth à mão de semear (em Portugal está publicado na Dom Quixote), vantagem de nos afeiçoarmos a um escritor torrencial, sem ser prolixo. “Sorrio quando acordo porque vivi mais um dia”, afirmou numa entrevista recente. Agora, deixou de sorrir.

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante