O juiz Carlos Delca, que mandou prender preventivamente os 23 adeptos que invadiram a Academia de Alcochete não é parco nas palavras. No despacho que aplica a prisão preventiva a todos os arguidos ouvidos ao longo de quatro dias, o magistrado considera que o que aconteceu é uma verdadeira “perversão do desporto”. Mais. É “a utilização dos atletas para os adeptos se sentirem campeões e, quando tal não é atingido, castigam os jogadores, chamam-lhes filhos da puta e cabrões, ameaçam-nos de morte, batem-lhes, estragam-lhes os carros e prometem-lhes outras agressões se não se portarem bem”, diz. “Este comportamento é inaceitável”, acrescenta, “em face da lei portuguesa, terrorista”. Depois explica porquê: um comportamento destes “encerra, em si mesmo, os pressupostos daquilo a que a lei define como ato terrorista”, conclui, depois de explicar que todos os suspeitos terão cometido um total de 59 crimes.

No despacho de 56 páginas a que o Observador teve acesso, o magistrado resume que os arguidos cometeram um total de 59 crimes, entre introdução em lugar vedado ao público, ameaça gravada, ofensas à integridade física, sequestro, dano com violência, detenção de arma proibida, incêndio florestal, terrorismo e resistência e coação contra funcionário. Tudo porque, naquele dia 15 de maio, pelas 17h00, todos eles integraram um grupo que “sob a égide de um plano previamente gizado”, entraram sem autorização na academia de Alcochete “com o intuito de intimidar e causar receio, para que ficassem limitados na sua liberdade e vontade”.

Refere o juiz que queriam os adeptos causar estragos nas instalações e nos jogadores e equipa técnica, pelo que lançaram tochas e provocaram danos no local, ferimentos nalguns elementos e estragos nos carros ali estacionados. Os arguidos molestaram o treinador Jorge Jesus, os jogadores William de Carvalho, Acuña, Battaglia, Fredy Montero, Misic, Rui Patrício , Petrovic, o treinador-adjunto Mário Pinto e o enfermeiro Carlos Mota ” com vários socos e pontapés”. Ainda empurraram Hugo Fonte e Bruno César e atingiram o fisioterapeuta Ludovico Marques. Depois das agressões, abandonaram as instalações. E só depois foram abordados pela GNR.

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No despacho, o magistrado lembra que apenas nove dos arguidos se disponibilizaram a prestar declarações e que, nem por isso, o seu testemunho só ajudou. Dos que falaram, todos eles disseram à procuradora do Ministério Público e ao juiz que o ponto de encontro foi marcado via WhatsApp para o parque de estacionamento do Lidl no Montijo. A ideia era aqui se juntarem em “maior número” possível. “Todos os arguidos foram ao Montijo, ou seja, andaram para trás alguns quilómetros”.

A maioria, conclui o despacho, agiu de cara tapada. Porquê? Porque não queria ser filmado ou fotografado “pelos senhores jornalistas”, terão dito. Um dos arguidos até justificou que tapou a cara porque “não queria ser confundido com outras pessoas que ali estivessem a fazer coisas más”.

O magistrado reconhece que alguns dos testemunhos garantiram que não sabiam que aquele encontro em Alcochete iria resultar em agressões, no entanto todos eles perceberam que era suposto entrar num espaço “à força e sem autorização”. O juiz acredita mesmo que este grupo de detidos (recorde-se que seria um grupo de cerca se 50)  testemunharam as agressões, viram o lançamento das tochas para o campo de treinos, que viram fumo das tochas nos balneários, que viram o treinador do Sporting, Jorge Jesus, ser agredido, e que viram o jogador Bas Dost com  a cabeça partida. Mas que, ainda assim, “fugiram das instalações” do Sporting, depois de ter soado o alarme e de “terem conhecimento de que já haviam sido chamadas as autoridades”.

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Há, pelo menos, dois arguidos que se lembram de ter visto o treinador Jorge Jesus a pedir ajudar ao ex-líder da claque leonina, Fernando Mendes, e que, ainda assim, fugiram. “As declarações do arguidos ao invés de abalarem os fundamentos referidos no despacho do Ministério Público de apresentação dos arguidos para interrogatório, acabaram por reforçar o mesmo, corroborando a versão dos factos apresentada”. Reforça o juiz que os depoimentos dos arguidos só provaram que houve “premeditação” do crime, mesmo em relação ao facto de taparem as caras e de se aproveitarem do efeito surpresa.

Depois do relato, o magistrado não se coíbe de concluir que não teve, algum dia, “conhecimento de atos da mesma espécie, praticados por adeptos de futebol para com atletas e jogadores do seu próprio clube, saindo tudo o que se pode imaginar de educativo, de saudável e pedagógico que o desporto deve ser”. E lembra, ainda, de se recordar dos “cromos da bola” que a sua geração colecionou, das “fotos de jogadores”, e dos “autógrafos” — considerando-os “tesouros”.

No despacho, o juiz lembra também que entre os 23 arguidos há sete arguidos com antecedentes criminais, por tráfico de droga, ofensas à integridade física, condução sem carta e detenção de arma proibida, furto e tentativa de homicídio. Todos os outros tinham um cadastro limpo.