Ao contrário de outro gigante da música brasileira, Caetano Veloso, Francisco Buarque de Hollanda não tem sido presença habitual nos palcos portugueses nos últimos anos. Há 12 anos que não os pisa, desde que deu nove concertos em Espinho, Porto e Lisboa, em 2006. Antes desse ano, o músico já não atuava em Portugal há 13 anos. Não há fome que não dê em fartura: nos próximos dias, “Chico” dá seis concertos em Portugal, dois no Coliseu do Porto — já este sábado e domingo, 2 e 3 de junho — e quatro no Coliseu de Lisboa, dias 7, 8, 9 e 10 do mesmo mês.
A ausência recente de 12 anos e a que a antecedeu, de 13, não se devem a uma relação fria do músico com o público português, ou a um desinteresse deste último pela sua música, como se percebe pelo número de concertos que o músico se prepara para dar nos coliseus nacionais. O motivo é outro. Ao contrário de Caetano Veloso, ou até de músicos como Milton Nascimento, Gal Costa e Maria Bethânia, Chico Buarque evita digressões internacionais, gravando também com muito menos regularidade do que Caetano, por exemplo. Os últimos álbuns de originais do músico têm sido editados a cada seis anos: a Carioca, de 2005, sucedeu Chico, de 2011, e a este seguiu-se o recente Caravanas. Lançado em 2017, Caravanas é o 38º álbum de estúdio de Chico Buarque em mais de 50 anos de carreira e é o mote para as apresentações em Portugal.
Questionado certa vez pela imprensa brasileira precisamente sobre os caminhos paralelos seguidos por ele e Caetano Veloso (o último “quer ser cada vez mais popular”, o segundo “praticamente se recolhe, faz poucos show, fica anos sem gravar”, apontava-lhe o jornalista já em 1999), o cantor de “Sinhá”, “Construção” e “Futuros Amantes” foi claro: “O Caetano fez a opção dele. Eu já fiz mais shows, já fui mais à televisão, mas hoje não tenho vontade. (…) Quero fazer o que me dá vontade, o que eu acho bom. É o que me interessa.” A resposta foi dada em 1999 mas, a julgar pelo ritmo de edições e concertos neste século, o cenário não se alterou.
O sucesso no Brasil e um mestre: o “amigo” Tom Jobim
Chico Buarque nasceu numa família de posses e prestígio. O pai era o famoso historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, que foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e com quem Chico não teve “uma grande relação” em pequeno, porque este “não era uma pessoa que se ocupasse muito das crianças, não tinha interesse.” A mãe era a pianista e pintora Maria Amélia Cesário Alvim, uma intelectual que, até morrer, em 2010, sentiu sempre algum “embaraço” pelo facto de o filho ter seguido uma carreira no “show business“, segundo contou Chico Buarque no documentário “Chico – Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr.
O título do filme, aparentemente simplista, sintetiza bem o músico. Quer nas canções mais políticas, quer nas mais românticas, nas peças de teatro que escreveu e nos romances, Chico Buarque inspirou-se na cultura brasileira e nas paisagens de São Paulo e Rio de Janeiro para compor personagens e narrativas. Não é por acaso que o período em que viveu em Itália foi — assumiu posteriormente o próprio — o seu momento de menor fulgor criativo.
A música chegou cedo a Chico Buarque, através de um rádio levado para sua casa pela babysitter contratada pelos pais para cuidar dele e dos três irmãos. Mais longe estava o meio-irmão que Chico Buarque só há poucos anos descobriu que tinha, nascido de uma relação que o pai teve com a alemã Anne Ernst. Já morto, este meio-irmão serviu de mote à escrita do romance O Irmão Alemão.
A paixão pela música, que Chico Buarque aliou ao apreço pela leitura e escrita (escreveu peças de teatro e romances mas chegou a dizer que gostava “muito mais de ler do que de escrever”), fortaleceu-se quando, por volta dos 15 anos, ouviu pela primeira vez “João Gilberto e as músicas de Tom Jobim, a bossa nova, enfim.” Foi então que decidiu fazer as primeiras canções. Outras paixões foram e ainda são o cinema e o futebol. Os anos — tem hoje 73 — não atenuaram o impacto dessas descobertas musicais de adolescência: em 2011, numa das poucas grandes entrevistas que deu nesta década, a Rolling Stone Brasil perguntava-lhe quem era “a pessoa musicalmente mais importante” para o seu percurso e Chico respondeu: “O Tom Jobim.”
Eu o situaria ao lado do João Gilberto, são os responsáveis pela minha formação. Tom foi um amigo, um parceiro com quem aprendi e de quem fui muito próximo. Vi ele compondo ‘Águas de Março’, ele tinha esse lado meio exibicionista. E o João foi a revelação, o ponto inicial”, disse ainda. Foi inclusivamente com Tom Jobim que Chico Buarque gravou um dos seus maiores êxitos, “Sabiá”.
As acusações de machismo e um prémio português entregue por Pilar del Río
A carreira musical de Chico Buarque começou nos anos 1960 e o seu primeiro sucesso chegou em 1966, com o tema “A Banda” (“Estava à toa na vida / o meu amor me chamou / p’ra ver a banda passar / cantando coisas de amor”). Mais desligada do contexto político brasileiro, por comparação com os temas de intervenção social que emergiram em anos seguintes, a canção foi incluída no primeiro álbum de Chico Buarque, intitulado Chico Buarque de Hollanda, e deu ao músico a vitória na segunda edição do importante Festival de Música Popular Brasileira (MPB).
Apesar de até há pouco tempo ser considerado um dos músicos mais consensuais do Brasil — há apenas três anos, o El País escrevia que “há apenas uma coisa mais difícil de encontrar do que alguém que fale mal de Chico Buarque no Brasil: uma mulher que não seja apaixonada por ele” –, os anos que se seguiram a “A Banda” não foram fáceis para o músico. E não apenas pelas dificuldades que a ditadura militar e a censura lhe colocaram. Mesmo entre pares, Chico Buarque chegou a ser mal visto, como constatou:
Em 1967, surgiu o Tropicalismo”, um movimento cultural vanguardista que se impôs no Brasil e na música brasileira, do qual Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes, Gilberto Gil e Tom Zé foram impulsionadores. “Eu fui eleito pelos teóricos do Tropicalismo, pelos jornalistas, como o adversário a ser abatido.”
A década seguinte, de 1970, é ainda hoje considerada quase unanimemente como a mais frutífera da carreira de Chico Buarque. Foi aí que o músico editou alguns dos seus álbuns mais aclamados, como Construção (1971), Caetano e Chico – juntos e ao vivo (1972), Sinal Fechado (1974) e Chico Buarque (1978). Foi aí que o músico escreveu os primeiros livros, a novela Fazenda Modelo e o livro infantil Chapeuzinho Amarelo, foi então que colaborou pela primeira vez na escrita do argumento de um filme (“Quando o Carnaval chegar”) e que dedicou mais tempo à escrita para teatro — entre outras peças, concebeu com Ruy Guerra o musical “Ópera do Malandro”, que deu origem a um disco homónimo em 1979.
Foi também nos anos 1970 que Chico Buarque gravou “Tanto Mar”, tema gravado em duas versões. A primeira era uma saudação à revolução do 25 de Abril e tinha uma letra que foi censurada no Brasil. Ao contrário de Portugal, que acabava de se libertar do Estado Novo, o país de “Chico” vivia ainda governado por um regime autocrático. A segunda versão, de 1978, aligeirava o tom de exaltação mas deixava registado um verso memorável: “Foi bonita a festa, pá!”
O sucesso manteve-se nas décadas seguintes, mas, sem uma reinvenção constante como a praticada por alguns dos seus pares (Caetano à cabeça), o músico foi acusado de fazer o mesmo disco durante anos a fio. Nas últimas duas décadas, refreou o ritmo de concertos e gravações e fez paragens de alguns anos para se dedicar à literatura e aos romances. Em 2010, venceu mesmo o prémio literário Portugal Telecom (PT), com o romance Leite Derramado. O prémio foi-lhe entregue por Pilar del Río, jornalista, escritora e viúva do Nobel português José Saramago.
O que é que ficou da irreverência que Chico Buarque tinha quando escrevia canções interventivas, era o alvo número um da ditadura militar e dava entrevistas de cigarro numa mão e copo de uísque na outra? Ou de quando, ainda adolescente, tinha como “esporte” roubar carros para se divertir “com um grupo” de amigos do seu bairro, na época “do James Dean, do rock and roll e da rebeldia”? A dissidência. Tal como em época da ditadura militar Chico Buarque falava naquilo “de que os jornais não falavam”, segundo ele, nos últimos anos resguardou-se da cantiga de intervenção, mais política, para continuar a ser desalinhado.
Não me interessa hoje repetir em música o que está todos os dias nos jornais. Nem me interessa muito dar entrevista falando mal do governo. Eu gostava de falar mal do governo quando os jornais não o faziam”, apontava Chico Buarque há sete anos, em entrevista à revista Rolling Stone.
Se é duvidoso que Chico Buarque tenha sido sempre unânime no Brasil, sendo ainda assim certo que nunca teve críticos acérrimos entre os ouvintes (teve-os em alguns pares, durante pouco tempo, e na classe política), a grande divisão sobre os seus méritos emergiu precisamente quando o músico revelou um dos temas novos que vai apresentar em Portugal, “Tua Cantiga”. Tudo por causa de uns versos considerados machistas ou pelo menos reveladores de uma visão conservadora da figura feminina: “Quando teu coração suplicar / ou quando teu capricho exigir / largo mulher e filhos / e de joelhos, vou-te seguir / na nossa casa / serás rainha“.
Ao Observador, aquando da polémica, a produtora e jornalista do jornal “Correio”, Flavia Azevedo, disse: “Pela primeira vez, eu percebi uma música de Chico não ter unanimidade.” À boleia da polémica, seguiram-se novas acusações ao cantor nas redes sociais, por causa das posições políticas de esquerda que sempre assumiu e da proximidade com Lula da Silva e Dilma Rousseff. Isto apesar de, em 2011, Chico Buarque ter dito à Rolling Stone que tem “um milhão de críticas ao PT” e ter afirmado há “pessoas que conheceu quando [o PT] era um pequeno partido que hoje são pessoas com quem não me quero encontrar. Não vou a Brasília, não vou ao palácio, não tenho atração alguma pelo poder.” No El País, já o ano passado, o jornalista e escritor brasileiro Xico Sá assinou uma crónica de opinião em que escrevia: “O Brasil precisa voltar a amar Chico Buarque.”
Scolari, os Radiohead, o semanário Se7e e o Avante
Paralelamente às polémicas, a carreira de Chico Buarque resiste, embora com menor projeção internacional do que a de alguns dos seus pares. Ele mesmo confirmava esse facto há alguns anos, numa entrevista à imprensa brasileira: “Já tentei fazer carreira lá fora quando morei na Itália e não fui bem sucedido. Não tenho essa ambição. Mal faço shows aqui no Brasil, tenho preguiça de fazer shows lá fora e não passa pela minha cabeça a ambição de ser conhecido lá. (…) Não me chateia não ter sido descoberto até agora.”
Mas um dia fui jogar futebol em Lisboa e o Felipão [Luiz Felipe Scolari] era o técnico. Era um jogo dos amigos do Zidane contra os amigos do Figo. Ele me escalou de saída, e o baterista dos Radiohead [Phil Selway] ficou lá no banco, ’emburrado’, porque ele não saiu jogando e eu sim. No intervalo, falei p’ra ele: ‘Escuta, não fica aí de cara feia porque o nome da sua banda é roubado de uma música minha’. [Risos] O David Byrne ouviu a ‘rádio cabeça’ [verso da canção ‘O Último Blues’], quando foi lançado o disco da Ópera do Malandro. (…) Ele deve ter achado que era uma expressão que se usava muito no Brasil e fez a música lá dele [“Radio Head”, do disco True Stories, de 1986] que deu depois origem” ao nome da banda de Thom Yorke, apontou.
Portugal foi um dos países que acolheu sempre com mais entusiasmo a música de Chico Buarque. E é impossível perceber esse fenómeno sem misturar o Chico Buarque músico com o Chico Buarque interventivo, crítico da ditadura militar brasileira, atento aos “ventos de mudança” que sopravam em Portugal na segunda metade dos anos 1970.
A relação do músico com os portugueses, contudo, começou alguns anos antes. Os primeiros concertos foram dados entre 1969 e 1970, quando Chico Buarque morava em Itália (em auto-exílio) e foi “uma ou duas vezes a Portugal”. Numa dessas visitantes, Chico fez-se acompanhar de Vinicius de Moraes e Nara Leão, como recordou a uma revista nacional, há 12 anos: “Fizemos um show que foi um grande sucesso. Nós cantávamos e o Vinicius recitava poemas. Fazia-se um silêncio na sala, era uma verdadeira veneração por Vinicius.”
Numa época em que os media tinham maior peso na formação do gosto dos leitores, em particular no campo cultural, a receção da música de Chico Buarque pelos órgãos nacionais foi determinante para o tornar um dos nomes maiores da música popular brasileira (MPB). Esta impôs-se em Portugal muito por responsabilidade das telenovelas brasileiras, ou melhor, das suas bandas sonoras. Gabriela, Cravo e Canela — a primeira, de 1977 — deu o mote, motivando até uma noite no Hotel Ritz organizada pela TV Globo com o intuito de a promover. Nessa noite, houve showcases de Toquinho e Vinicius de Moraes, entre outros.
Reunindo maior consenso na crítica do que outros músicos populares do Brasil, como o cantor Roberto Carlos, Chico Buarque e os artistas da sua geração que lhe eram próximos (Caetano Veloso, Milton Nascimento e Maria Bethânia, entre outros) foram alvo de atenção em Portugal por parte de órgãos como o jornal Se7e, surgido quatro anos depois do 25 de abril. Num artigo sobre a relação desse semanário com a MPB, Pedro Belchior Nunes e Carlos Cavallini realçavam que “o mercado da MPB em Portugal esteve marcado por uma forte ligação política” e que, para os jornalistas do Se7e, “a MPB era sinónimo de qualidade. Existia, quase sempre, um esforço em ressaltar a qualidade dos arranjos e da gravação. Além disso, raramente publicavam críticas negativas sobre os discos dos artistas da MPB.”
Um dos nomes essenciais para perceber a relação entre público português e músicos brasileiros nesses anos é o de José Nuno Martins, que decidiu “abrir uma promotora de espetáculos para trabalhar com concertos de música brasileira.” Ora, José Nuno Martins esteve sempre muito próximo do Se7e, aparecendo “em reportagens do jornal” e vencendo “diversos Se7e de Ouro”. Concluem os autores:
A relação que se estabelece entre a empresa [promotora de espetáculos de José Nuno Martins] e o Se7e torna-se fundamental para compreendermos o impacto da MPB em Portugal durante este período.”
Foi dois anos depois do primeiro número do Se7e, em 1980, que Chico Buarque deu um dos seus concertos mais marcantes em Portugal. Aconteceu na festa do Avante, a festa-comício anual do PCP, e Chico Buarque atuou de borla com os músicos e cantores Edu Lobo e Simone e com o grupo MPB-4. O concerto mereceu cobertura especial do Se7e, com uma longa entrevista de António Macedo ao músico. À agência Lusa, Macedo recordou-o como “um tipo muito envergonhado, que não gosta de concertos” e contou que Chico Buarque estava “completamente apavorado”
Ao Observador, Ruben de Carvalho, responsável pela programação cultural do Avante!, recordou que o contacto com Chico Buarque deu-se “através de uns camaradas que viviam no Brasil e tinham boas relações com ele, na altura da ditadura dos generais. O Chico, como de costume, era para vir sozinho e apareceu com Edú Lobo, MPB4 e Simone.” O espetáculo aconteceu no dia 9 de julho de 1980, precisamente o dia da morte de Vinicius de Moraes, com quem Chico Buarque viera pela primeira vez a Portugal. “Juntaram-se todos em palco para cantar o ‘E se todos fossem iguais a você’. Foi um momento muito emotivo.”
Os ventos que sopram hoje em Portugal serão mais propícios a Chico Buarque do que aqueles que sopram num Brasil dividido entre “coxinhas” (filiados ao PSDB) e “petralhas” (PT). Mesmo as acusações recentes de machismo a “Tua Cantiga” parecem ter sido uma polémica de pouca dura em Portugal e Chico Buarque volta ao país com canções aparentemente imunes a polémicas e posicionamentos ideológicos, que resistem ao passar dos anos.
Nos concertos da digressão brasileira de Caravanas, o alinhamento dos concertos (longos, ou pelo menos quase seguramente com mais de uma hora e meia de duração) têm privilegiado os temas do novo álbum, misturando-os com uma espécie de best of de carreira, como se percebe aqui. Contudo, dada a longa ausência de palcos portugueses, é possível que nos coliseus o alinhamento mude e Chico Buarque privilegie mais as canções marcantes do passado. E quem sabe com alguns convidados surpresa, visto que recentemente cantou com Carminho (o dueto “Falando de Amor”, para o disco que a portuguesa fez em tributo de Tom Jobim) e foi alvo de homenagem de António Zambujo, que fez um disco de versões intitulado Até Pensei Que Fosse Minha. Que a festa seja bonita, pá!