A semana tinha começado agitada para Salvador Sobral. Ainda no sábado tinha estado na Casa da Música, no Porto, a dar um concerto com o projeto Alexander Search ao lado do pianista Júlio Resende. Mas a atuação no Parque Marechal Carmona em Cascais, no EDP Cool Jazz, prometia ser especial. Primeiro porque a companhia era diferente: ao lado dele, e além de Júlio Resende, Salvador Sobral teve o saxofonista Ricardo Toscano; e já antes o compositor angolano Toty Sa’med tinha estado em palco. Depois, porque foi uma espécie de viagem até ao tempo em que o jovem Salvador descobria Chet Baker ou Caetano Veloso. Tudo isto com convidados especiais, histórias e algumas surpresas.
Pipocas à borla e vinho tinto
Uma noite no EDP Cool Jazz é feita de mais vinho tinto do que de cerveja, de mais vinho verde do que sidras. Entre todas as luzes quentes montadas no jardim, no entanto, uma chamava mais a atenção do público do que qualquer outra: a do carrinho de pipocas pintado de vermelho e dourado. Ali dão-se — não se vendem, dão-se — pipocas, ora doce ora salgadas, é à vontade do freguês, dentro de pacotes de cartão com os formatos de antigamente, tiras brancas e encarnadas incuídas. “Tem mesmo a certeza que é de borla?”, pergunta uma rapariga à senhora atrás de mim. A senhora garantiu que sim, porque o cunhado “descobriu que sim”, e assim sendo só podia ser verdade. A rapariga viu naquela certeza o mote para chamar os amigos estrangeiros para a fila.
Foi junto à grade que separa a plateia VIP e o relvado que conhecemos Nicolas e Yanis, dois rapazes que garantem ter idade suficiente para estarem a beber aqueles copos de vinho, mesmo se estivessem na Suíça. Não sabiam o que era o Cool Jazz até terem aterrado em Portugal há dois dias; muito menos sabiam a quem Toty Sa’med estava a dedicar a canção que interpretava em kimbundo em cima do palco.
Sabiam, isso sim, quem era Salvador Sobral: “O que ganhou a Eurovisão”, dizem com toda a certeza. O álcool ainda não lhes deixa cantarolar “Amar pelos Dois”, mas do palco vem um conselho que chega mesmo a calhar: “Quem não está a cantar, por favor, bata palmas. Quem pode canta, quem não pode bate palmas. Isso é um ditado angolano”, diz Toty Sa’med, dando por terminado o seu concerto.
“Quem é que estava aqui em 2016 quando éramos anónimos?”
O forte aplauso que se pediu para Salvador Sobral só é travado quando o cantor entra em palco e estala a língua e vibra os lábios para aquecer a voz numa noite mais fria do que se esperava em pleno julho. A ornamentar o palco e a dar almofada à voz está um piano, um contrabaixo e uma bateria. Para este Salvador, basta isto. Não é preciso mais nada para iniciar o concerto da noite, que começa ao som de “Change”.
Diz Salvador que “algumas coisas nunca mudam”, mas o percurso do artista português deu mesmo uma volta nos últimos dois anos e ele sabe disso. Depois de agradecer ao público pela presença — “Obrigada por terem vindo, está frio e vocês vieram na mesma”, nota — Salvador Sobral pergunta: “Quem é que estava aqui em 2016 quando éramos anónimos?”. As pessoas riem-se mas só duas o fazem de mão no ar. Passados dois anos já há quem se empurre para o ver mais de perto.
Salvador Sobral prometeu um “concerto inédito” porque “assim o queria a organização”: “Eles disseram, ‘Não, nós no nosso festival queremos uma coisa que mais ninguém tenha tido’. Então criei um concerto com tudo o que foram influências musicais para mim”. Prometido é devido, já dizia Rui Veloso, que é uma dessas influências. E Salvador (com Júlio Resende no piano, André Rosinha no contrabaixo, Bruno Pedroso na bateria e Ricardo Toscano no saxofone) levou toda a gente numa viagem entre uma margem e outra do oceano.
De Chet Baker a Luísa Sobral, as influências de Salvador
A viagem a bordo da voz de Salvador Sobral começa com Chet Baker e a canção “But Not For Me”, com a qual o artista não resiste a usar a trompete virtual que traz guardado nos lábios antes de passar a vez ao saxofone. Seria o primeiro passo de um concerto que do standard jazz passaria num ápice para o bolero. “Si Me Compreendieras”, de Lucho Gatica: “Gosto da música da América Latina porque ela vem do coração. Além disso a primeira vez que contactei com esta música foi no álbum Fina Estampa do Caetano Veloso, por isso junto aqui duas influências. Seria tão giro um dia cantar isto com ele, mas pronto… não faz mal sonhar”, desabafa o cantor.
Mas é na irmã que Salvador Sobral vê a maior referência: “Ela é a minha maior influência musical e pessoal. É uma pessoa sensata e pragmática. Convidei-a para vir mas não quis, diz que tem de ser mãe. Ser mãe vem primeiro, é a natureza, a música vem muito depois”, diz ele como quem a brincar vai dizendo as verdades.
Só de Luísa Sobral, Salvador cantou duas peças: uma delas “I Might Just Stay Away”, uma canção sobre quem prefere ficar à margem do amor com receio de gostar demais dele; e a outra, “Prometo Não Prometer”, sobre quem tenta esquecer mas não promete conseguir. A relação entre os dois sempre foi próxima, embora o público a tenha reconhecido mais de perto desde o ano passado, quando Luísa Sobral compôs “Amar pelos Dois” — que Salvador também cantou com o embalo do público — para que o irmão ganhasse a Eurovisão com a maior pontuação da história.
Da irmã para o pai, Salvador precisou de pouco para continuar a falar da família. O cantor apresentava Ray Charles como uma das suas influências: “Isto era do tempo em que eu me sentava à secretária com óculos escuros a fingir que tocava piano. Está ali o meu pai que não me deixa mentir. Eu estava tão viciado nele que sabia as letras do ‘Ray’ [filme sobre a vida de Ray Charles] de cor”, garante o cantor.
A referência voltou já no final do concerto — e depois de ter dito que tocava mal piano porque o professor que tinha em Barcelona o pôs a cantar e a compor um reportório inteiro em vez de o por a lidar com as teclas. Aconteceu quando Salvador Sobral quis cantar Beatles, mas não o fez: “O meu pai sempre me disse que os Beatles nunca podiam ser imitados porque ninguém podia ser tão bom como eles”.
Depois de Janeiro, Salvador Sobral apadrinha Tiago Nacarato
Janeiro também participou no concerto de Salvador. Os dois cantaram no encore a uruguaia “Zamba del Olvido”, outra influência de Sobral, e um tema do convidado especial, um dos que que integra o novo álbum, Fragmentos. É nesse álbum que estão duas das composições mas famosas de Janeiro, uma chamada “Canção Para Ti” e outra que não tem título e que ele apresentou este ano no Festival da Canção.
Sobral explicou de onde vinha aquela química entre os dois: “O Janeiro é uma das minhas influências e é mais descontraído que eu. Hoje, por exemplo, chegou duas horas e meio atrasado, mas agora estamos aqui a cantar como se eu não estivesse chateado com ele”, diz.
Antes, no entanto, Salvador Sobral já tinha chamado ao palco outro jovem artista que disse admirar: Tiago Nacarato. Sobral, que chegou a participar no programa de televisão Ídolos da SIC, disse ter descoberto Nacarato a partir da irmã, enquanto esteve internado: “Estava no hospital e a minha irmã chega lá e diz: ‘Ouve este gajo que foi ao Fator X’. Eu respondi-lhe: ‘Opá isso é muito deprimente, já não basta estar num hospital, eu nunca participaria numa coisa dessas’. E não é que havia mesmo um músico do programa?”, recorda Salvador.
O cantor, que há pouco tempo foi submetido a um transplante de coração que o manteve afastado dos palcos durante uns meses, disse não saber se Tiago Nacarato “é melhor pessoa ou melhor músico”, mas admite ter nele um amigo: “É o meu novo amigo. Ontem até fomos jogar à bola, ele dormiu em minha casa e depois fomos a uma tasca”, conta Salvador.
O fim do concerto
Quem julgava que o concerto de Salvador Sobral terminaria com a nova “Mano a Mano”, composta por Júlio Resende, enganou-se. O ponto final foi dado com “Drume Negrita”, uma canção cubana. “É para acabarmos animados. Vá, quero tudo a dançar, tirem o pé do chão”, disse o cantor.
A 26 de julho, Salvador Sobral vai estar no Festival La Mar de Músicas em Cartagena e dois dias mais tarde no Festival Internacional de Jazz em San Sebastián. Antes já esteve em Ponta Delgada, Évora, Málaga e Barcelona. Por cá, o EDP Cool Jazz prossegue até 31 de julho com nomes como Benjamim, Jessie Ware ou Gregory Porter.