A edição de outubro da “Quatro Cinco Um” chama a literatura infantil para primeira página, mais um ensaio de Caetano Veloso e uma crítica de Leyla Perrone-Moisés sobre Eduardo Lourenço. Com cerca de 50 páginas de textos rápidos e sem rodeios, servidos por um grafismo leve, de poucas imagens e muita prosa, esta revista literária brasileira chegou a Portugal em maio, um ano depois do primeiro número. É dirigida a partir de São Paulo por Fernanda Diamant e Paulo Werneck. Ele é jornalista, editor de livros e tradutor, está de visita a Lisboa como membro do júri que anunciará nesta quarta-feira o vencedor do Prémio Leya (100 mil euros para novos romancistas de língua portuguesa). Tem também aproveitado para promover a revista junto do público português. Há dias, passou pelo Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos e nesta terça-feira, às 19h30, vai estar na Fnac do Chiado, em Lisboa, ao lado do crítico Pedro Mexia.
A “Quatro Cinco Um” apresenta novidades literárias brasileiras através de recensões e ensaios e tem dois títulos incontornáveis como referência: “The Paris Review” e “The New York Review of Books”. A distribuição em Portugal é assegurada pela editora Tinta da China (que, por sua vez, exporta para o Brasil a “Granta” em língua portuguesa). A tiragem ronda 14 mil exemplares e o preço de capa é de cinco euros. “Somos uma revista da esquerda liberal. Acompanhamos o mercado, mas de forma crítica”, resume Paulo Werneck.
Nascido há 40 anos em São Paulo, filho do escritor e jornalista Humberto Werneck, tem parentesco distante com o artista brasileiro homónimo. Foi curador do programa principal da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, entre 2014 e 2016, e dedica-se tanto à revista quanto à tradução – acaba de verter para português Aquele que Não é Digno de Ser Amado, de Abdellah Taïa, escritor marroquino bastante difundido em França e até agora sem edições em língua portuguesa. Há dias, nos escritórios da Tinta da China, em Lisboa, Paulo Werneck falou com o Observador sobre literatura e política.
Como tem corrido a aventura da “Quatro Cinco Um” em Portugal?
Ainda é um esquema muito inicial. O trânsito de publicações entre Portugal e o Brasil é dificultado de todas as maneiras. A revista é trazida na mala, dependemos de boas almas que aceitem carregar a revista em malas de viagem. Uma das lutas que temos agora é tentar viabilizar um esquema de exportação de livros e revistas digno de um trânsito intercultural. Até agora, não fiz uma abordagem ao Instituto Camões, mas é uma hipótese. Acho absurdo que editores dos dois lados do oceano ainda tenham de carregar livros e revistas em malas de viagem. É muito caro e demorado.
O público que compra livros é o mesmo que compra a sua revista?
Não acredito que quem não seja leitor queira comprar a revista. É uma revista para leitores. Existe uma fantasia muito grande em torno da formação de leitores. Há a ideia de que os leitores estão a sumir-se. Na verdade, eles existem. A minha mãe é professora universitária e o meu pai é escritor e jornalista. Eles vão morrer a ler, não vão abandonar esse hábito. Podemos deixar de ir ao cinema ou ao teatro, mas não deixamos de ler. Quem é leitor de livros, lê até ao fim da vida. Esses leitores estavam mal servidos em termos de uma publicação crítica, porque existe uma redução de espaço na imprensa, os cadernos culturais falam cada vez menos de livros. Por outro lado, quem é leitor, é leitor eclético, lê biografia, ficção, história, livros infantis. Habitualmente, pensa-se que o leitor tem apenas um nicho. Na nossa revista, apostamos que ele tem vários nichos. Cada leitor mobiliza cinco ou seis áreas diferentes da produção. Em cada mês, falamos de 200 títulos. No entanto, o mercado brasileiro de livros e revistas está a passar por uma das mais graves crises de todos os tempos. As principais redes de livrarias estão em quebra. A Livraria Cultura está com sérias dificuldades e tem fechado lojas. A Livraria Saraiva, que é a maior do país, também.
Que explicações encontra?
Adotaram modelos de negócio inviáveis. As livrarias pequenas continuam a prosperar. Um exemplo é a Livraria da Travessa, um espaço maravilhoso no Rio de Janeiro, muito charmoso, uma livraria à moda antiga. Quem vai e pede uma indicação, porque quer oferecer um livro à mãe, sabe que o vendedor é capaz de fazer recomendações, porque ele próprio é leitor. Não sei como é em Portugal, mas no Brasil as grandes redes adotaram um esquema em que os vendedores não são leitores. O livro perdeu a centralidade. Fora isso, as grandes redes têm políticas comerciais vindas do mundo dos supermercados, como a venda de espaço. O livro que a pessoa vê em destaque ao entrar na livraria está ali porque a editora alugou o espaço e não porque o livreiro acredita naquele livro. Na Travessa, a montra não é vendida, resulta das escolhas do livreiro.
A revista tem vendido bem no Brasil e em Portugal?
Está pegando, tenho a certeza disso. No início, penávamos para convencer nomes importantes e agora até já recebemos propostas de críticos relevantes. Do ponto de vista comercial, está a ir bem, dentro dos limites que uma revista destas pode ter. Nunca seremos um blockbuster. Temos assinantes que pagam um preço especial de 451 reais por ano [cerca de 100 euros] e funcionam como mecenas da redação, o que é uma tendência no jornalismo: os leitores envolvidos no financiamento. Também conseguimos que editoras mais pequenas começassem a criar o hábito de fazer anúncios. E depois temos parceiros: o papel é doado e a gráfica faz um grande desconto.
Que critérios usam na escolha dos livros que aparecem na revista? E como é que escolhem os críticos convidados?
Nos colaboradores, queremos misturar os grandes nomes da cultura brasileira com os novos nomes. Não procuramos necessariamente críticos literários, queremos que todas as pessoas de destaque nas respetivas área possam fazer recensões, mesmo que não sejam profissionais da crítica. E misturamos com um jovem de 22 anos, que é um talento, que é amigo de alguém, que nos mandou um e-mail a pedir para colaborar. Nem apenas a elite, nem apenas os novatos. Quanto aos livros que queremos resenhar, a mesma coisa. Quando um autor relevante publica um livro, acredito que é obrigação da revista dar uma opinião crítica, mesmo que seja um best-seller.
Já fizeram capa com Elena Ferrante, um fenómeno de vendas.
Porque era importante para nós questionar o valor dela. É bom ou mau? Quando toda a gente fala do mesmo autor ou do mesmo livro, existe uma desconfiança, há quem pense que é apenas marketing, mas se é um sucesso é porque mobiliza algo nos leitores. O marketing, por si só, não vende livros.
O que é que vende livros?
Depende muito do livro, cabe a cada crítica explicar o que há de bom num grande livro. No caso de Elena Ferrante, a crítica que escolhemos para fazer o texto, Eliane Robert Morais [professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo], que publicou aqui em Portugal a Antologia da Poesia Erótica Brasileira, mostrou que a novidade estava numa mistura entre a subjetividade das personagens através da amizade feminina, a força de Nápoles como cenário, mais o dialeto próprio da cidade, e a iminência de que algo vai acontecer. Nos livros de Elena Ferrante há sempre um vulcão à espreita para entrar em erupção e isso é uma tensão tipicamente literária, que atrai. Depois há o erotismo, que junta tudo isto.
O facto de a revista sair agora em Portugal significa que vão dar mais atenção à literatura aqui publicada?
Temos o compromisso de seguir o mercado brasileiro. Seria uma pretensão impossível querermos cobrir Portugal ou os EUA, não temos estrutura para isso. Mas pensámos criar uma coluna de lacunas, com autores estrangeiros que merecem chegar ao Brasil.
A carta de um leitor na edição de julho dizia que a “Quatro Cinco Um” dá mais atenção ao campo progressista do que ao campo conservador e liberal. É uma crítica justa?
Primeiro, temos a premissa de só publicar cartas negativas, não queremos divulgar os elogios. Às vezes, há um que passa, mas o que interessa são aqueles que nos criticam. Uma leitora já criticou serem apenas mulheres a assinar resenhas de livros escritos por mulheres. Tem razão, porque a causa da literatura das mulheres precisa de envolver também os homens.
E este outro leitor que criticou a falta de atenção à literatura e aos críticos conservadores?
Acho um pouco injusto, porque publicámos alguns autores conservadores. Numa edição, saíram duas resenhas de economia, uma de um ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, e outra de um economista muito conservador, Maílson da Nóbrega. Eu e a Fernanda temos uma visão dos temas que são relevantes para a sociedade hoje. O espaço das mulheres na cultura ou a literatura negra são temas muito relevantes. No Brasil, há uma confusão grande sobre o conservadorismo. Há um tipo de conservador que acredita ter um compromisso com a ditadura militar. É como se um conservador em Portugal precisasse de defender Salazar. Não tem de ser assim. Alguns autores conservadores que convidamos para a revista não fazem essa confusão. É possível ser conservador sem defender ditaduras, a pessoa pode ter um pensamento católico ou uma certa visão do papel do Estado na economia e não precisar de se comprometer com a barbárie.
Do ponto de vista ideológico, é uma revista progressista?
Preferencialmente, sim.
De esquerda?
Depende. Lido no Brasil, sugere uma associação imediata à política partidária de esquerda. Existe uma polarização enorme no país. Certamente, temos interesse na agenda progressista, que está em ascensão no Brasil. Temos até obrigação de a acompanhar. Uma revista destas tem de acompanhar o mercado. Existe uma certa crença no jornalismo brasileiro de que é importante ir contra o mercado, de que não é bom fazer o jogo do mercado. Acreditamos que a nossa revista deve acompanhar o mercado, mas de forma crítica. Uma revista destas não serve para ser alheia ao mercado, seria inútil. Servimos para dizer o que está a chegar este mês às livrarias, se os livros prestam ou não prestam.
Querem manter-se afastados da política partidária?
Acho que uma revista mensal não é o sítio mais adequado, porque a política partidária tem um dinamismo que não se coaduna com o ritmo de preparação da revista, que começa três meses antes da publicação. O nosso valor maior é o pluralismo. Queremos que a revista comporte diferentes correntes de pensamento, sem formar um perfil ideológico único.
[vídeo de promoção da “Quatro Cinco Um”, publicado em 2017]
Estamos em vésperas da segunda volta das eleições presidenciais brasileiras [28 de outubro] e os dois candidatos são um radical de direita e o delfim de um ex-presidente corrupto. Que opinião tem?
Em relação ao Lula, certamente o PT [Partido dos Trabalhadores] governou num contexto de corrupção que já existia e pouco fez para que mudasse. Houve alianças com figuras corruptas, estruturas de corrupção que foram mantidas. Seria ingénuo dizer que é mentira que houvesse corrupção na Petrobras, sabemos que havia. Por outro lado, a celeridade do processo dele… Foi o processo mais rápido da história do país. Goste-se dele ou não, era o maior líder, o mais popular, liderava as sondagens. É perigoso quando um líder é encarcerado para que não concorra às eleições. Se deveria ser punido de alguma forma? Acho que sim, não sei como, não sou jurista. A prisão dele envenenou a sociedade, foi até impedido de dar entrevistas. O Haddad [candidato substituto do PT] tem um brilho próprio, é um intelectual, professor da Universidade de São Paulo, poderia ser colaborador da “Quatro Cinco Um”. Foi prefeito de São Paulo, saneou as contas públicas, fez políticas progressistas, mas cometeu erros políticos, o mais famoso dos quais foi aumentar o preço dos transportes públicos.
É apoiante de Haddad?
Não votei na primeira volta [7 de outubro], porque já estava em Portugal. Neste momento, todo o progressista brasileiro que não seja petista [apoiante do PT], deve votar Haddad e entrar na oposição no dia seguinte. Apoiar Bolsonaro, que prega a barbárie, o fuzilamento, a violação, a morte de negros, não dá. A direita brasileira não extremista esfarelou-se. Há hoje a tese de que a judicialização da política foi um atalho que a direita encontrou, em vez de legitimar um líder, de criar um diálogo com os eleitores, de entender porque é que as pessoas votam Lula. É preciso entender.
Alguém dizia: mesmo que Bolsonaro não ganhe, o “bolsonarismo” já venceu. Faz sentido?
O anti-petismo está a vencer. Quando temos líderes de direita e de esquerda claramente identificados, e hoje não temos, os eleitores escolhem um deles no momento da eleição, porque percebem qual deles fala a sua língua. A direita não tinha líderes. O candidato de direita Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, ficou em quarto lugar com uma votação ridícula para alguém que esteve 20 anos à frente do estado de São Paulo. Não há líderes na direita e o Bolsonaro captou esses votos, além do sentimento anti-petista.
Uma última questão política: é a favor do Acordo Ortográfico de 1990?
Na revista, seguimos o Acordo, como toda a gente no Brasil. Uniformizamos os textos nesse sentido, porque é o que está em vigor em todo o mercado editorial. No Brasil, não houve um debate crítico em relação ao Acordo, como houve em Portugal.
Os críticos do Acordo Ortográfico entendem que esse debate também não existiu em Portugal.
Mas houve muita resistência e muitos autores enchem-se de brios e não publicam com o Acordo. No Brasil, o Acordo tornou-se um critério de exclusão de compras governamentais. O governo é um grande comprador de livros e a partir do momento em que impôs essa condição, o mercado editorial seguiu. A população tem dificuldade em escrever com o atual Acordo ou com o anterior, por isso, é uma discussão de editores e revisores, a população está totalmente alheia.