Há 33 anos que o Teatro Nacional de São Carlos não punha os pés no Porto para dar ópera à cidade. O hiato quebrou-se em 2017, com a apresentação das récitas “A Violação de Lucrécia”, de Britten, no Teatro Nacional de São João, e “Turandot”, de Puccini, no Coliseu do Porto. Este sábado, dia 20 de outubro, o Coliseu recebe – com sala cheia – “La Traviata”, de Verdi, graças à parceria que estabeleceu com a instituição lisboeta. Os 2500 bilhetes voaram em menos de três meses após o anúncio. Nada que tenha surpreendido o presidente do Coliseu do Porto – “Há uma fome de ópera na cidade”, revela.

Em 2016, Eduardo Paz Barroso, em entrevista ao Observador, argumentava que não fazia “sentido haver um grande orçamento para o teatro nacional de ópera e isso estar confinado a Lisboa”. Trazer de volta a “ópera de qualidade” ao Porto foi, aliás, uma das suas principais bandeiras quando assumiu as rédeas do Coliseu. “Quando eu cheguei, o Coliseu era a ‘Casa da Ópera’. Mas onde é que estava ela? Ter ópera não é ter uma grande quantidade de produções. Eu sou contra o fast food cultural e prefiro ter duas óperas muito boas do que ter 10 muito discutíveis”, contou ao Observador.

Foi a procura de qualidade e a vontade de descentralizar uma instituição cultural que se diz nacional – “porque o orçamento do Teatro Nacional de São Carlos é pago pelos impostos de todos os portugueses” – que levou o Coliseu a considerar o Teatro Nacional de São Carlos como parceiro. Um ano depois do primeiro espetáculo conjunto, Eduardo Paz Barroso está confiante de que já foi criado “o embrião de uma programação de ópera no Porto”.

“O Teatro Nacional de São Carlos não estava habituado a sair do Largo de São Carlos. Isto é uma micro-revolução cultural”, assegura.

“La Traviata” é também o primeiro espetáculo da nova temporada do teatro sediado em Lisboa. E não o é por acaso. “É um modo de mostrar que o Teatro Nacional de São Carlos olha para o Porto em pé de igualdade”, ao levar à cidade “exatamente a mesma produção que foi apresentada em Lisboa”, explica Carlos Vargas, Presidente da OPArt, a empresa que gere o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.

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No entanto, dois espetáculos em dois anos ainda não é suficiente, principalmente tendo em conta o interesse já manifestado pelos portuenses. E Eduardo Paz Barroso reconhece-o: “Uma programação de ópera no Porto, no meu entender, passa por assegurar no mínimo três óperas distintas, com um registo adaptado para a formação de públicos, e complementar com uma versão concerto. Ou seja, haver quatro presenças consistentes do Teatro Nacional de São Carlos.”

Refira-se que, apesar de no ano passado o Teatro Nacional de São Carlos ter apresentado uma récita no São João, – “um sucesso extraordinário”, nas palavras de Carlos Vargas – a comunicação do teatro portuense avançou ao Observador que a instituição não têm nenhum projeto a curto-prazo relacionado com a programação de ópera.

Uma década sem ópera de qualidade

Mas façamos um exercício de memória. Até há uma década, o Porto não precisava da instituição sediada em Lisboa para apresentar espetáculos de qualidade. Enquanto o Círculo Portuense de Ópera (CPO) esteve em atividade, “havia poucas récitas, mas havia”, assegura Palmira Troufa, professora no Conservatório de Música do Porto, que se estreou como cantora em 1977 no Teatro Nacional de São Carlos. E mais: “Nestas produções do Círculo, era dada primazia aos cantores não só portugueses como portuenses.”

No entanto, no final de 2008, anunciou-se que o Porto, pela primeira vez desde 1967, deixaria de ter produção operática própria. A Associação de Amigos do Coliseu do Porto e o CPO receberam a notícia de que as suas produções de ópera deixariam de receber os 250 mil euros estatais anuais. Pinto Ribeiro, na altura ministro da Cultura, argumentou que o financiamento dado à Casa da Música já contemplava as verbas destinadas à produção operática. Isto apesar de a Casa da Música não ter fosso de orquestra (só existente no Coliseu e no Teatro Nacional de São João), o que impossibilita à partida a realização deste tipo de espetáculos na instituição. Perante este anúncio, José António Barros, ex-presidente do Coliseu, anunciou ao Jornal de Notícias: “Vai deixar de haver ópera de qualidade produzida no Porto”.

“Turandot” no Coliseu do Porto em 2017 (foto: Alexandra Brites / Coliseu Porto Ageas)

E deixou mesmo, confirma Palmira Troufa, que durante mais de duas décadas foi maestro titular do coro infantil do CPO. Hoje, reconhece a “fome de ópera” que Eduardo Paz Barroso diagnostica e acredita que a parceria com o São Carlos pode aliviá-la. Mas acha que se deveria “ir mais além”. “Não se justifica que uma cidade como a nossa não tenha um teatro de ópera com produção própria”, atira. E relembra: “O Porto já teve pelo menos dois teatros de ópera – um que ardeu, o Teatro Baquet, e o São João, que foi um dos grandes palcos da Europa. Hoje não tem nenhum.”

Sem uma estrutura do género que integre os talentos que se formam a norte, as oportunidades profissionais são escassas, lamenta a professora. No Porto, só existe uma orquestra profissional – a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música – e o único coro profissional existente no país é o do Teatro Nacional de São Carlos. “A criação de um teatro de ópera aqui no Porto implicaria uma orquestra, um coro. Pense na quantidade de pessoas, a nível de emprego, que isso iria movimentar”, desafia a professora. Até lá, há grandes promessas a abandonarem o país, adianta: “Somos todos nós que estamos a financiar a educação musical destas pessoas e, em vez de usufruirmos delas, outros países vão fazê-lo.”

Construir e regenerar o público portuense

A professora do Conservatório de Música do Porto acredita que os os portuenses estão tão sensibilizados para a ópera quanto a população de Lisboa. Mas acha que é preciso fazer mais, explica:

“Como é que se cria o hábito de leitura numa criança? Dá-se-lhe livros para ler. Mas se ela só ler uma história hoje e outra daqui a um ano, o hábito não é criado. E ninguém educa uma pessoa em música se lhe der só uma ou duas óperas por ano. É um longo caminho a percorrer, não se faz de um dia para o outro, mas tem de ser feito.”

No entanto, concorda com a abordagem delineada pelo Coliseu – “É a partir de ‘clássicos’ como a Traviata que se começa a conquistar o grande público.”

E a conquista não é tão difícil quanto isso. Basta que o espectador tome iniciativa uma só vez, argumenta Carlos Vargas: “Na esmagadora maioria das vezes, quando as pessoas veem um espetáculo destes, ficam logo fascinadas. Porque a ópera é o cinema do século XVIII – todo o aparato, a multidão em palco, a música extraordinária, os temas que têm a ver com o ser humano como a vida, a morte, o amor, as traições, as famílias, as lutas de poder… Estas histórias, bem contadas, cativam sempre as pessoas. A ópera hoje é um espetáculo tão mágico como era.”

Mas, se se já se comprovou que a receção é boa, porque não se faz mais? “Porque é um processo gradual e porque há questões que nos ultrapassam. O São Carlos é um equipamento público, programa com o Orçamento de Estado e tem um timing de programação que não é o nosso”, responde Eduardo Paz Barroso.

[Luis Gomes à conversa com Matteo Mazoni nos ensaios de “La Traviata”:]

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E, depois, levanta-se a questão do financiamento, que não é, para já, suficiente para fazer melhor. Para a realização da ópera de sábado, o Estado, via Ministério da Cultura, contribuiu com 50 mil euros – sendo que, segundo o presidente do Coliseu, o custo de operação aproxima-se dos 150 mil euros. Tudo o resto é feito com receita de bilheteira, da qual ainda se subtrai “uma percentagem muito significativa dada ao São Carlos”, revela.

Neste momento, o teatro sediado em Lisboa aguarda a aprovação do Orçamento de Estado de 2019, mas, perante a informação já divulgada, Carlos Vargas diz que o “aumento previsto da dotação para a ópera e o bailado é uma muito boa notícia”. E explica porquê: “Pode ajudar a viajar mais pelo país.” Por sua vez, Eduardo Paz Barroso avança que o plano de atividades que o Coliseu apresentou ao Ministério neste ano tem como epicentro a ópera, mas “só lá para fevereiro” se saberá o que é que “o Coliseu vai fazer com as verbas públicas da cultura para programar e o que terá de deixar de fazer”.

Talvez seja interessante relembrar que a estreia de “La Traviata” em Portugal foi feita a norte, no antigo São João, a 28 de Fevereiro de 1855. Só no final desse mesmo ano é que a ópera chegou a Lisboa. Neste sábado, e 163 anos depois, Violetta Valéry é interpretada pela soprano Marina Costa-Jackson, que se estreia em Portugal com um papel que recentemente a fez ser eleita como a “Melhor Cantora do Ano” pelo Austin Critics Table. Já a personagem de Alfredo Germont, será encarnada pelo tenor português Luís Gomes, que conquistou, no mês passado, dois prémios Operalia. É a primeira vez que atua no Porto.

Em abril de 2019, o Coro do Teatro Nacional de São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa regressam ao Coliseu para apresentar uma versão concerto do terceiro ato de “Parsifal”, a última ópera composta por Richard Wagner e que é, segundo o presidente do Coliseu, “uma ótima introdução à ópera” para quem nunca se aventurou na arte. Em outubro do mesmo ano, o São Carlos voltará a norte com outra ópera cujo nome ainda está por anunciar.